Lincoln Justo da Silva, associado e voluntário da Ser Mais Valia. Médico e com longa e meritória dedicação à causa solidária nos PALOP e a outras causas congéneres, como sem-abrigo em Lisboa e doentes em cuidados paliativos
Desde 2004 tem desenvolvido com regularidade missões em Moçambique e Guiné -Bissau como médico pediatra voluntário.
Presidente cessante da SMV, lugar que desempenhou durante dois mandatos.
Fomos conversar com ele, como passamos a transcrever.
GC (Graciela Pinheiro) – Que balanço final faz dos seus mandatos, na liderança da Associação Ser Mais Valia?
Fui o segundo presidente da Ser Mais Valia, pelo que coube à equipa que comigo liderou a nossa associação, um trabalho de consolidação dos elementos fundacionais e o desenvolvimento em três vetores: equilíbrio financeiro, novas parcerias para o desenvolvimento das missões e aumento do número de sócios. No segundo mandato, a equipa que me acompanhou esforçou-se por fazer progredir a Ser Mais Valia, com novos projetos entre os quais saliento o Mais Conhecimento – Melhor Futuro, integralmente financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, tendo a primeira e segunda edições sido realizadas na Guiné Bissau. Em Portugal, além do grande desenvolvimento do Projeto Mentoring- Ser Mais Valia, que atualmente acompanha 103 estudantes e envolve 42 mentores, desenvolvemos vários projetos junto de comunidades vulneráveis, apoio à autoaprendizagem da língua portuguesa e acompanhamento do jovens africanos com vontade de desenvolver os seus conhecimentos de língua portuguesa através da escrita no que foi conhecido como Projeto EstritAfricando.
Nos PALOP planeamos e executamos vários projetos que incluíram a saúde, a língua portuguesa, a literacia digital, as energias renováveis, a tecnologia de frio e ar condicionado, a promoção da mulher, o apoio ao empreendedorismo e ao trabalho digno. As linhas de orientação da nossa atividade tiveram como base a Agenda 2030 e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e no caso da Guiné-Bissau, os compromissos derivados dos protocolos com a Cooperação Portuguesa.
Atualmente a Ser Mais Valia tem 102 associados e continua em crescimento o que demonstra a importância do seu trabalho e da sua credibilidade. Para se ter uma ideia mais detalhada do que foi realizado nos meus mandatos, sugiro a consulta dos relatórios de atividades e contas desde 2019 até 2024.
GC – Considera que os objetivos e causas a que se propôs foram alcançados?
A nossa intervenção pautou-se pelo respeito pelos Direitos Humanos e contributo para o cumprimento dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Tendo estes conceitos como balizas orientadoras, realizamos nos PALOP, projetos e missões numa perspetiva de cooperação para o desenvolvimento com atenção especial à educação e saúde, ao desenvolvimento das capacidades e competências das pessoas, à promoção da transformação digital, ao empoderamento das mulheres e à igualdade de género num contexto em que a mulher era secundarizada nas decisões da família e da comunidade. Para o cumprimento desses objetivos, tivemos sempre presente a importância das parcerias pelo que nos esforçamos por atuar dessa forma. Colocamos como condição prévia, responder às necessidades locais sinalizadas quer por instituições oficiais quer por instituições privadas.
Em Portugal, seguimos a mesma metodologia, nomeadamente no Projeto Mentoring e nas atividades junto de comunidades vulneráveis, como o Bairro em Movimento, no município de Oeiras, nas intervenções junto de comunidades Migrantes e Imigrantes em Lisboa e Associações de estudantes guineenses da Universidade do Porto.
Para o cumprimento das metas a que se propôs, a Ser Mais Valia, conseguiu aumentar o número de associados e o de parcerias assim como as missões realizadas, tanto em Portugal como nos PALOP.
A Ser Mais Valia possui uma característica única no contexto das ONGD portuguesas. Os seus voluntários são pessoas com 55 anos e mais, o que, a par dos conhecimentos e experiência adquiridos ao longo da vida profissional, podem contribuir para uma sociedade mais informada e com maior capacidade para decidir. O reconhecimento da sua atividade e a característica única dos seus associados permitiu-nos integrar os Órgãos Sociais da Plataforma Portuguesa das ONGD e responder às solicitações crescentes de colaboração interpares.
Através de um inquérito recente ao qual responderam 67% dos associados, verificamos com grande satisfação que 93% tinham participado ou participavam em atividades da Ser Mais Valia e 85,2% referiram que a associação correspondia às suas expetativas.
Além de todo este esforço, o equilíbrio financeiro foi mantido em ambos os mandatos.
GC – Que vertentes mais privilegiou, particularmente no domínio dos PALOP e em que áreas geográficas, e em que circunstâncias foram desempenhadas?
Como disse, a Ser Mais Valia apresenta características únicas no contexto das ONGD portuguesas. A nossa associação, é uma ONGD de média escala e não tem recursos humanos nem financeiros que possibilitem grandes intervenções. Por isso, desde o início, tivemos o cuidado de escolher áreas de atuação onde os voluntários podem trazer valor às comunidades beneficiárias das missões.
Nos meus mandatos, a Ser Mais Valia pautou a sua atividade em consonância com a Agenda 2030 e a Estratégia Portuguesa para a Cooperação. Atuamos em S. Tomé e Príncipe, na Guiné-Bissau e em Moçambique.
Em S. Tomé, a nossa intervenção incluiu o grupo das Tecnologias, instalou na sequência de um financiamento pela Embaixada da Austrália, um sistema fotovoltaico para fornecer energia a um centro de formação do parceiro local (AJOLF) e na melhoria da literacia digital.
Na Guiné-Bissau, atuamos nas áreas da educação, saúde, matemática, língua portuguesa, transformação digital, energia renovável, refrigeração e frio industrial e agricultura só para citar as intervenções mais frequentemente realizadas. A experiência e conhecimentos dos nossos voluntários constituíram referências valiosas para os parceiros locais. Recentemente, graças a um novo financiamento da Embaixada da Austrália, foi instalado um sistema fotovoltaico que assegura energia contínua na Maternidade do Hospital de Cumura.
Em Moçambique, desenvolvemos a nossa atividade na área da saúde materna e infantil, obstetrícia, bloco operatório e saúde neonatal numa região remota da província de Tete (distante cerca de 1500 km da capital Maputo), continuando as missões anteriores da Fundação Calouste Gulbenkian (Projeto Mais Valia) iniciadas em 2013. Realizamos ações de formação para profissionais de enfermagem dos centros de saúde distantes do Hospital de referência na área da saúde infantil (rehidratação, pediatria preventiva). Estas missões desenvolveram-se em circunstâncias difíceis dada a grande distância entre o hospital de referência e os centros de saúde, apenas acessíveis por estradas de terra muito deterioradas.
Tivemos sempre presente o facto de atuarmos em países soberanos, pelo que a nossa ação desenvolveu-se em conjunto com os parceiros locais e no cumprimento das orientações técnicas nacionais. A nossa prioridade centrou-se nas Pessoas a quem se destinaram as nossas intervenções, tendo o cuidado de planear os programas com os parceiros locais, manter o acompanhamento e a avaliação de cada missão ou atividade.
GC – Os recursos materiais e humanos disponibilizados, foram globalmente suficientes, no contexto da diversidade das ações programadas?
A Ser Mais Valia possui uma bolsa de voluntários, diversificada embora com maior dimensão na área da Educação e Saúde. Foi sempre possível, responder a solicitações dos parceiros locais e desenvolver em conjunto, missões relacionadas com as suas necessidades. Necessitamos de mais profissionais da área da saúde e das tecnologias.
Os recursos financeiros têm sido um enorme desafio para a concretização de alguns dos nossos projetos quer em parceria quer enquanto únicos executantes das missões. Este desafio continua e tenderá a estar cada vez mais presente à medida que a nossa Associação for crescendo.
GC – O Lincoln tem um longo percurso no campo da solidariedade social, no contexto das suas várias vertentes. Como associado e voluntário da SMV protagonizou várias missões, designadamente em Moçambique e Guiné-Bissau. Pode falar-nos sobre as ações realizadas?
A minha primeira ação como voluntário data do ano 2004 em Moçambique, onde colaborei com o Ministério da Saúde na formação dos profissionais na área da saúde materna e neonatal nos centros de saúde das periferias das cidades do norte e centro do país.
Já passei muitos anos a planear, organizar, executar e avaliar missões em conjunto com parceiros locais e institucionais.
Além de Moçambique, onde trabalhei em diferentes províncias ao longo destes anos, tive oportunidade de intervir na Guiné-Bissau desde 2016, na formação em saúde materna e infantil.
Atualmente, damos cumprimento à segunda edição do Projeto Mais Conhecimento-Melhor Futuro, financiado pela Fundação Calouste Gulbenkian, trabalhando com um grupo de 30 estudantes do ensino secundário das escolas do setor autónomo de Bissau. Através de programas adaptados ao programa nacional, promovemos a capacitação desses alunos na área da matemática, TIC, língua portuguesa em sessões presenciais e à distância que irão terminar no próximo mês de Junho.
Além do trabalho individual como médico pediatra, desenvolvi inúmeros contatos que permitiram à Ser Mais Valia a difusão da sua imagem e a concretização de projetos e parcerias que possibilitaram o alargamento do âmbito das nossas atividades. Foi um trabalho pouco visível, mas indispensável ao crescimento da associação. Atualmente, a Ser Mais Valia tem protocolos de cooperação com 25 instituições, em Portugal e nos PALOP.
Infelizmente, os países onde trabalhei têm progredido a um ritmo lento. Reflexo desta situação, os indicadores da saúde, da educação e da economia desses países não permitem que o desenvolvimento chegue às comunidades mais vulneráveis, com enfase para as comunidades rurais. As enormes dificuldades no acesso a água potável, saneamento, habitação condigna, escolaridade e saúde de qualidade ficam aquém das expetativas, o que condiciona o desenvolvimento de atividade produtiva que traga valor às populações. Por estes motivos, a diminuição da pobreza e da mortalidade, têm tido uma melhoria muito lenta.
Como consequência, as intervenções a realizar tendem a focar-se na solução dos problemas de curto prazo e com a dificuldade de garantir a sustentabilidade das mudanças introduzidas e desejadas pelas comunidades.
As organizações como a Ser Mais Valia não podem perpetuar a sua presença no terreno, mas apoiar o esforço das autoridades locais, regionais e nacionais para que as suas comunidades possam beneficiar dos conhecimentos e experiência que os nossos voluntários podem oferecer.
A deterioração progressiva das condições de paz e segurança globais, a dificuldade na implementação de políticas públicas coerentes, leva ao agravamento das dificuldades, mais visíveis nas comunidades vulneráveis tanto nos grandes aglomerados como nas populações rurais. A Ser Mais Valia deve privilegiar estas populações para responder aos desafios colocados pela solidariedade e cooperação, premissa fundacional para uma intervenção positiva.
GC – Que testemunho nos pode deixar, no que concerne ao futuro da SMV, particularmente no domínio de estratégias que visem relacionamentos institucionais, protocolos, apoios técnicos e humanos, bem como participação dos Associados?
Após 5 anos à frente dos destinos da Ser Mais Valia, posso concluir que a associação tem um largo futuro diante de si. A estratégia de atuação da Ser Mais Valia está definida pela sua missão, visão e valores. Não poderá ser de outro modo. O seu crescimento e desenvolvimento dependerão da estrutura funcional de forma que haja coerência na ação e que esta tenha em consideração as exigências, não apenas das regras que condicionam o trabalho voluntário, mas também das parcerias entre instituições com quem trabalhamos. A procura atenta e incessante de fontes de financiamento e o cumprimento da legislação sobre Proteção de Dados, bem como outros aspetos que comprometem a atuação individual, devem caraterizar as nossas missões e atividades.
A vida de uma associação constitui um processo dinâmico e complexo, pelo que devo confessar, não consegui atingir as expetativas em todas as áreas de atividade, nomeadamente a comunicação externa de que é exemplo a permanente atualização do sítio da Ser Mais Valia. Apesar de todos os associados se constituírem como voluntários, existem áreas como a comunicação, a gestão das redes sociais e o controle financeiro, que exigem o recurso permanente ou pontual a especialistas, para apoiar a direção nessas tarefas. A participação dos associados é um grande êxito da Ser Mais Valia como mostrei através de algumas respostas a um questionário que recentemente foi lançado na nossa associação. E creio que devemos todos manter essa dinâmica.
GC – Em jeito de conclusão, que mensagem se lhe oferece deixar?
A primeira mensagem é de gratidão para com os colegas que durante os dois mandatos, trabalharam comigo para o desenvolvimento da Ser Mais Valia.
A segunda mensagem é ter em consideração que 93% dos associados num inquérito recente, responderam que trabalharam ou ainda trabalhavam na Ser Mais Valia. Este compromisso de cooperação e sentimento de pertença é de extrema importância numa associação como a nossa. Faço votos para que se mantenha e se desenvolva.
Graciela Pinheiro
Voluntária da Ser Mais Valia