Gisela Casimiro fotografada por Diana Mendes

4 PERGUNTAS A… GISELA CASIMIRO

GISELA CASIMIRO *

– poeta e artista –

 

1 – A Gisela é uma jovem mulher, poeta e artista. No momento presente o que é que mais a interpela e faz querer criar?

Escrevo poesia e crónica, o que me permite abordar diversas vezes os mesmos temas inesgotáveis e de maneira variada para construir essa memória colectiva. Eu adoro rir e o humor é constante no meu olhar sobre as coisas. Adoro pessoas, o que é uma opinião impopular nos últimos anos. Escrevo sobre pessoas, colecciono diálogos e notas do quotidiano obsessivamente, quer seja em momentos mais íntimos e da esfera familiar, ou em interacções com e entre estranhos. Interessa-me observar, ouvir e registar o momento presente e a beleza e estranheza do dia-a-dia, do que está mesmo à nossa frente. Daí já não sentir necessidade de recorrer à ficção, como quando me iniciei na escrita. Não significa que não volte a fazê-lo. Considero que existe riqueza na imaginação, mas que a espontaneidade e o estar presente na sua própria vida e na dos outros são igualmente valiosos. A minha escrita não é tanto sobre fugir da realidade mas sim transformá-la de dentro para fora. Naturalmente, interessam-me os detalhes, o não dito, o dito sem querer, a poesia inesperada. Mas também escrevo sobre sentimentos, sobre comida, sobre o corpo e a imagem que dele temos, entre muitas outras coisas. Tudo o que faço se interliga; a escrita pode ser inútil e servir propósito nenhum como também pode ser uma ferramenta de transformação social e cívica, mas não chegaremos longe sem nos conhecermos a nós mesmos e aos outros.

 

2 – A sua poesia fala de memória, de pessoas e da Natureza e num poema seu leio: «Tens a altura das raízes/que prendem a terra ao seu eixo».
As suas raízes e o seu eixo são pertença de África? Onde encontra a sua voz?

Gisela Casimiro fotografada por Enric Vives-Rubio

Sim, a Natureza é indissociável da poesia. O poema “Raízes” era originalmente um poema de amor, dedicado a uma pessoa concreta (e muito alta!). Com o tempo tornou-se um poema de amor-próprio, sobre outra pessoa: eu. É um poema sobre ir ao mais fundo de si para poder elevar-se também. As pessoas estão na nossa vida por diversos motivos e períodos de tempo, mas só nós estaremos sempre connosco. Ocorreu muito tempo entre a escrita do poema e a publicação do livro. Nesse tempo também eu evoluí e o modo como me vejo no mundo e a mim mesma. O poema não tem nenhuma relação com África. Eu nasci na Guiné-Bissau mas vim para Portugal ainda criança, como tal essa foi uma escolha e uma necessidade dos meus pais. Sempre vivi em Portugal desde então e sempre tive nacionalidade portuguesa. Convivo bem com o lugar onde vivo e com o lugar de onde vim. Identifico-me com coisas de ambos os países, como há outras que igualmente não considero que me representem. O eixo tem de estar dentro de cada um, não pode estar fora. A noção de comunidade é cada vez mais fundamental, como se viu pelo contexto pandémico que atravessamos, no entanto a construção começa com cada um. A minha voz é como o meu corpo: foi ganhando e ocupando lugares e criando-os quando eles não existiam. A minha voz é sobretudo universal, porque sou um ser humano, antes de mais, escrevo sobre temas e sentimentos com os quais qualquer pessoa no mundo pode identificar-se. Até porque cada um recebe dos textos também o que traz em si. Espero poder continuar a aprender sobre as minhas origens guineenses, algo para o qual os meus pais são os maiores contribuidores e espero, sobretudo, poder fazer lá o que faço aqui, contar essas histórias. Não obstante, África é um continente vastíssimo e diverso e eu ainda tenho muito trabalho pela frente em relação a ele. Mas temos todos, independentemente das nossas origens.

 

3 – E ser uma jovem mulher africana; artista, escritora e activista… é o caminho escolhido ou imposto pelas desigualdades e pelo seu olhar sobre o que a rodeia e a choca?

O trabalho social não é sobre quem o faz. Há coisas que nos escolhem e outras que escolhemos. Quase nada me choca pois tenho noção do quão bons e maus conseguimos ser enquanto pessoas. Há momentos em que não temos, sequer, escolha. Eu sempre soube que era e seria uma contadora de histórias. Interesso-me por causas sociais, não apenas pelo racismo. Sou activista de uma forma interseccional e nem poderia sê-lo de outra forma. Faço voluntariado e preocupo-me em ter uma consciência cívica, em agir. Interessam-me as questões de género, a habitação, as pessoas que não têm acesso a comida, etc., mas não consigo dedicar-me a tudo nem em simultâneo. O racismo é algo que experiencio directa e constantemente, no entanto nem todas as pessoas são activistas ou têm de o ser. Lutar faz parte da condição das minorias, por isso viver a sua vida da melhor maneira possível é já uma forma de resistência. Ser feliz é uma forma de resistência. Dialogar também. Há muitas formas de activismo e o importante é fazer algo, seja ajudar um vizinho no mesmo prédio, seja ir a manifestações. Trata-se fundamentalmente de humanismo e de civismo.

 

4 – Gostaria de sublinhar o quanto necessário continua a ser um dia como o Dia da Mulher – num ano tão fora do comum, em que os problemas parecem agudizar-se e a violência ganha um novo espaço nesta nova realidade confinada. Quais são os seus pensamentos e como podemos celebrar a importância deste dia?

O ideal seria não precisarmos de um Dia Internacional da Mulher. Com a pandemia vimos aumentar os casos de violência doméstica, embora mascarados pelo véu invisível do confinamento. Vimos ainda a sobrecarga de horas de trabalho, sobretudo em regime de teletrabalho, bem como o desequilíbrio na gestão das funções domésticas combinadas com a escola em casa. O mais importante é educarmo-nos e tomarmos uma posição diária frente à injustiça e à igualdade, respeitando o outro e assegurando a sua integridade física, emocional e mental. Ainda temos um longo caminho pela frente. De nada servem dias internacionais de alguma coisa se acharmos que a nossa parte se fica por partilhar algo nas redes sociais e depois quando vemos algo a acontecer ficamos indiferentes. Não é suficiente, temos de estar em contacto com as organizações, associações e núcleos que trabalham directamente com as sobreviventes; temos de promover constantemente este diálogo na esfera pública e nas escolas; temos ainda de compreender que formas de ajudar existem, temos individualmente de tratar cada pessoa com civismo. A Marcha Mundial das Mulheres trabalha cada vez mais para garantir esses direitos minorados pela estrutura classista, capitalista, machista, racista, homofóbica e transfóbica, bem como para unir os diversos movimentos de mulheres, de modo a criar pressão nos governos, instituições e empresas, visto que este é um problema de toda a sociedade.

 

* Gisela Casimiro nasceu na Guiné-Bissau em 1984 e vive em Portugal desde o final dos anos 80.
É escritora e artista multifacetada: faz fotografia e teatro. Publicou o livro de poesia EROSÃO e é cronista do jornal HOJE MACAU.
Dirige o departamento de cultura do INMUNE – Instituto da Mulher Negra em Portugal.
É activista e mulher de causas, quer através da sua escrita, quer da sua acção enquanto voluntária.
E como a própria diz: «…há muitas formas de activismo e o importante é fazer algo… trata-se fundamentalmente de humanismo e de civismo.»

Recolha de Isabel Amorim
Voluntária da SMV