4 perguntas a Elisa Santos

Elisa Santos nasceu em 1968, no Porto, cidade onde vive e que diz ser «um dos seus portos».
Disse um dia: «Entendo-me cá, mas não gosto da ideia de ficar só cá – não quero muros, de nenhuma forma».
O seu percurso profissional passa por áreas tão diversificadas como os seguros, a comunicação, a produção cultural e a saúde comunitária.
Durante 9 anos trabalhou na área da cooperação para o desenvolvimento em Angola e Moçambique. Gosta do trabalho com as comunidades e do contacto com a diversidade cultural.
Formou-se em antropologia cultural na Universidade Nova de Lisboa em 2015.

A SMV deve-lhe, em grande parte, a sua parentalidade pois esteve na origem de tudo.

 

1- Depois de uma longa caminhada como voluntária em África e de trabalhos vários como produtora na área cultural, em 2012 está na Fundação Gulbenkian como produtora do “Próximo Futuro”. Em 2013 sonhou com um projecto de voluntariado focado em África para pessoas maiores de 55 anos, com competências e tempo e concretizou-o na Gulbenkian – é a mãe do MAIS VALIA. Como aconteceu tudo?

É uma síntese curiosa, esta que é feita, mas carece de duas notas. A primeira é sobre parentalidade. O Mais Valia é filho das mães, de duas mães, e só isto dava um título bombástico, pondo em causa a leitura do resto da nossa conversa. Se se atreverem a ler um pouco mais percebem porque digo isto.
A segunda é que como voluntária apenas estive 18 meses em Angola, mais propriamente no Uíge, com os Leigos para o Desenvolvimento (2003-2005). Depois, até meados de 2012 estive a trabalhar com várias entidades, como profissional da cooperação, em Moçambique e Angola. Uma dessas entidades foi a Fundação Gulbenkian, com quem trabalhei entre 2010 e 2012, em Angola, e onde nasceu a ideia do projeto Mais Valia.
Foi nos encontros e conversas com a Maria Hermínia Cabral, durante as suas visitas como responsável pela área da cooperação da Fundação, que a ideia de criar um projeto que aliasse competências e disponibilidade de maiores de 55, em situação de reforma, ou pré-reforma, com as necessidades de capacitação que encontrávamos no terreno foi sendo maturada. No regresso a Portugal, em 2012, o trabalho com a Fundação continuou dando-me a possibilidade de aliar duas áreas que me são muito caras: a área da cultura – nomeadamente a produção no Programa Próximo Futuro – e a área da cooperação. A proposta do Programa Gulbenkian Parcerias para o Desenvolvimento de criar um projeto de voluntariado que respondesse ao que já tínhamos identificado deu-me o privilégio de ser parte de uma história muito bonita e de sucesso.
Sendo um projeto inovador, com muito potencial, mas também com muitos riscos (alguns evidentes outros mais subtis, mas igualmente importantes), o trabalho de “criação” foi muito partilhado, discutido, envolveu muitas pessoas e instituições e por isso foi de uma enorme riqueza. Houve uma cumplicidade inusitada entre evidência e sonho, uma tensão produtiva entre o seguro e o risco, que nem sempre é fácil de encontrar. Aqui reside o grande privilégio de ter participado neste processo único.

 

2- O projecto MAIS VALIA inicia em 2013 e a partir daí muitas missões aconteceram. Concretizou-se o seu sonho ou há algo que não se tenha cumprido?

Há um dado muito curioso que pode ajudar a responder a esta pergunta. O primeiro voluntário Mais Valia partiu em missão no mês em que se cumpriam 10 anos da minha ida como voluntária para Angola. Não foi nada premeditado, nestas coisas a marcação de datas é sempre fruto de circunstâncias e agendas que não dominamos, foi um acaso que acabou por ter um grande significado pessoal. Eu fiquei com a sensação que estava a cumprir uma etapa importante, estava a retribuir o que me tinha sido dado, ajudando a criar condições para que outros vivessem uma experiência que, esperava eu, fosse tão enriquecedora e marcante como tinha sido a minha. Eu nunca “sonhei” fazer tal coisa, por isso cumpriu-se muito mais, em termos de expectativa pessoal, do que alguma vez imaginei.
Em termos de projeto eu acho que o Mais Valia cumpriu muito bem aquilo a que se propôs. Encarou uma série de circunstâncias como oportunidades – a crise económica e a depressão social, o desafio do envelhecimento ativo, o voluntariado, a cooperação – e arriscou uma proposta que não tinha termo de comparação. Lembro-me de o Professor Roberto Falanga, do ICS, escrever que não era conhecida uma proposta idêntica na Europa. A Fundação Calouste Gulbenkian tem esta vocação e esta capacidade: arriscar em projetos piloto e, caso eles resultem, entregá-los à sociedade civil para que os repliquem e enraízem. Não creio que pudesse sonhar mais do que isso, e isso cumpriu-se. Está a cumprir-se!

 

3- O M. V. termina em 2016 e a Elisa trabalha com um grupo de voluntários para preparar a saída da Gulbenkian no processo de autonomização que conduziria ao projecto ser gerido pelos próprios voluntários. Inicia, assim, a Associação SER MAIS VALIA, com a Elisa sempre próxima. Agora, em 2020, como olha e sente a nossa associação?

Olho sempre para a Ser Mais Valia com um espanto enorme. Isso deve-se à vitalidade, e energia que os membros da associação têm. Num tempo em que o associativismo perde força e parece até esvaziado, a Ser Mais Valia tem elementos comprometidos, laboriosos e muito atentos. Há sempre latente uma ideia de futuro e de perenidade, e isso é espantoso. Pode até parecer contraditório se pensarmos que se trata de uma associação cujos membros têm mais de 55 anos, cujas vidas – profissionais, familiares, sociais – estão já bem estabelecidas. Esta é talvez a primeira grande lição da SMV: o empreendedorismo, a inovação e a capacidade de perscrutar o futuro não são necessariamente características das gerações mais novas. Há um capital de conhecimento e sagesse que é exclusivo das gerações mais velhas e que, por isso, só elas podem rentabilizar.
Acompanhei muito de perto a primeira direção da SMV, o tempo de abrir estrada, de fazer nome, de decidir linhas estratégicas, de construir equipa e a motivar. É difícil explicar como estes três anos são exemplares. Deveriam ser observados como isso mesmo: como um exemplo. Ainda mais porque resultam de um trabalho de voluntariado sem qualquer retribuição monetária, sem qualquer benefício material, e ainda assim baseado em profissionalismo, empenho e compromisso.
Com o final do primeiro mandato colocou-se um dos desafios mais interessantes e arriscados de qualquer projeto ou organização: a sucessão. E também aqui a SMV é singular. Não há dúvidas do legado da primeira direção, do mérito da liderança da Mafalda França, tantas vezes reconhecido dentro e fora da associação. E esse mérito é também o de assegurar a identidade da associação sem a confundir com um rosto ou uma personalidade, por mais relevante que seja na história da SMV.
O processo de formação de uma nova lista para a direção da associação, a sua eleição por um número significativo de associados e o que se anuncia como linha de atuação da nova equipa liderada pelo Lincoln Justo da Silva fazem-me sentir esperança. Fazem-me acreditar que há uma estrutura basilar que está já assente e que suportará a construção dos próximos 3 anos. Fazem-me esperar por continuidades e também por novidades, todas realizadas a partir do que a associação tem de mais valioso: os associados e o tal “capital” de que falei ali atrás.
Como olho e sinto a associação, era a pergunta. Talvez a resposta resumida seja olho-a e sinto-a com enorme alegria por ela ser uma forma tão simples e eficaz de exercer a cidadania.

 

4- Na actualidade usa-se muito a ideia “fazer a diferença”. O que diria no sentido de a S. M. V. marcar uma diferença real no voluntariado?

Diria eu, e espero que não se envaideçam muito, que basta serem como são para fazerem a diferença. O voluntariado de competências realizado por pessoas com mais de 55 anos, com um tempo de missão limitado e a tipologia das missões (em parceria, de capacitação/formação), são já marcas muito fortes que fazem a diferença deste voluntariado.
Mas há ainda outras características que me parecem muito interessantes e que para a maioria das pessoas podem passar despercebidas. A SMV não tem voluntários em exclusividade, ou seja, os voluntários desta associação fazem missões com outras organizações sem que isso seja entendido como uma “traição”; as missões não são feitas à medida dos voluntários, são os voluntários que são recrutados/selecionados à medida das necessidades das missões e por isso se disponibilizam e aceitam as decisões da direção; o compromisso com a associação requer a identificação com os seus valores, nomeadamente com o respeito pelos direitos humanos e o empenho no desenvolvimento sustentável do indivíduo e das comunidades; estes valores são válidos em missão – em Portugal ou no estrangeiro – e na atuação corrente da associação com os seus associados e com os seus parceiros.
Creio que esta “cartilha” faz a diferença no voluntariado, seja aquele que a Ser Mais Valia realiza, seja aquele que pode inspirar.
Recolha de Isabel Amorim