A “louca” aventura solidária de Graciela Pinheiro

A “louca” aventura solidária de Graciela Pinheiro

 

Graciela Pinheiro * é uma pequena grande mulher. Apesar de baixa estatura física, tem-se mostrado capaz de grandes obras. Uma delas consistiu em trazer – por si mesma e à sua custa – da ilha do Príncipe, dois jovens locais a fim de virem fazer formação superior em Portugal. “Não te metas nisso”, aconselharam-na. Mas ela meteu-se. E eles cá estão, com os primeiros resultados a mostrarem que valeu a pena. Também para nós vale a pena perceber esta aventura solidária da Graciela, uma voluntária da Ser Mais Valia. Até porque o seu gesto mostra que há mais formas de cooperação que ir em missão para África.

 

Tens a teu cargo dois santomenses da ilha do Príncipe. O que fazes com eles?

Neste momento, eles já completaram aqui o 12º ano e já estão no ensino superior. Candidataram-se e entraram na terceira opção: Análises Laboratoriais. Durante um ano, estudaram durante o dia para fazerem o 12º ano e trabalham à noite para juntarem dinheiro para pagarem o curso. Agora, trabalham à noite para juntarem algum dinheiro para levarem no regresso, e também para enviarem algum para os filhos. Continuo a apoiá-los em tudo o que eles necessitam. Além disso, à sexta à noite vêm para a minha casa e passam cá o fim de semana. Esse é o tempo em que, além de um ambiente familiar, lhes damos o apoio possível nos seus estudos. As minhas filhas dizem que eles são os meus “filhos adoptivos”. Procuro ser para eles um porto seguro. E sou responsável por eles, perante a embaixada de Portugal em S. Tomé e perante o SEF, única forma de eles obterem o visto para virem para Portugal.

És responsável por quê?

Por tudo. Pela alimentação, estadia, e por aquilo que eles façam ou precisem. Se se portarem mal e tiverem de ser repatriados, tenho de assegurar-lhes a viagem.

E como é que te meteste nessa aventura?

Quem me conhece sabe que eu, vá onde for, vivo muito as coisas, muito mesmo, e ponho-me sempre no lugar do outro. Eu sou assim. Fiz duas missões no Príncipe, em 2014 e em 2015, e mergulhei nas comunidades, vi como as pessoas vivem, o que elas sofrem… e vivi histórias de muitas pessoas, que vinham pedir-me ajuda: os pais pediam ajuda para os filhos e os filhos pediam ajuda para eles próprios. Que tipo de ajuda? Sempre formação. Porque as pessoas sabem que quem tem formação acaba por arranjar emprego. Foi uma experiência profunda, em que recebi expressões de amizade que não posso esquecer.

Em formação de professores no Príncipe

Partilhei a vida daquelas pessoas e, sobretudo na segunda, pude perceber os sonhos que algumas pessoas alimentam. A população é muito jovem: 52% das pessoas andam na escola. Por vezes os pais vêm para Portugal e deixam os filhos entregues aos avós, ou a vizinhos, ou mesmo sozinhos. Eu vi alguns que estavam entregues a si próprios. Aquilo magoou-me imenso. No regresso, trouxe na bagagem uma inquietação permanente, um desassossego: “Tenho de fazer alguma coisa por aquelas pessoas”.

Como é que chegaste a estes dois?

Conheci-os lá, como conheci muitos outros. Um deles, além do trabalho na rádio, tinha uma barbearia ao lado da casa onde estava instalada, porque lá quase todos, os que conseguem, têm dois empregos. Mas, sobretudo, estes dois tinham uma condição única: trabalhavam na rádio e o Governo local assegurava-lhes a manutenção do posto de trabalho quando voltassem.
Andava sempre a procurar bolsas… mas não eram, nunca eram para eles. Eu considero-me uma alimentadora de sonhos, mas cheguei a um ponto em que pensei: eu tenho de passar, da esperança que lhes dou, à ação no terreno. Se através das instituições não consigo ajudá-los, hei-de eu conseguir trazer alguém. Não consigo mudar o mundo, mas hei-de conseguir mudar pelo menos o mundo destes [dois] jovens. E assim foi. Fiz um plano, apresentei-lhes, eles aceitaram.

Eles aceitaram. E depois?

Depois foi um ano inteiro de preparação, pois apareciam sempre obstáculos. E o maior obstáculo era que o Governo não podia dar-lhes apoio financeiro por três anos. E o segundo era o problema do visto: os jovens não conseguem visto para Portugal, porque já não voltam. Então, aproveitei a minha ida, numa viagem privada, a S. Tomé, combinei com eles para virem do Príncipe com os papéis deles tratados, e foi com o meu termo de responsabilidade que o visto lhes foi concedido. Mas era um visto por seis meses e, cá, eu tinha de transformá-lo numa autorização de permanência. Foi uma trabalheira: era preciso terem trabalho e estarem inscritos na Segurança Social. Para isso tive de garantir-lhes um atestado de residência, que é a minha casa, e arranjar quem lhes desse trabalho, única forma de poder inscrevê-los na Segurança Social. Mas foi difícil, porque a inscrição tem de ser feita numa plataforma que é europeia e, para isso, têm de ter documentos europeus, não bastam os africanos. Para ultrapassar estas dificuldades todas, tive o apoio de várias pessoas daqui [em Leiria]. Depois, felizmente, um amigo meu, conhecendo o caso, disponibilizou-se para dar-lhes trabalho e arranjou-lhes estadia. Começaram a trabalhar de dia e a estudar à noite para tirarem o 12º ano, que já concluíram.

As pessoas à tua volta…

Quando tornei público este meu objetivo, todas me disseram: “Não te metas nisso!”. Incluindo um amigo santomense que teve uma experiência semelhante, trouxe de lá um rapaz, mas ele portou-se mal e ele teve de lhe pagar a viagem de regresso.

Mas foste em frente. Dá para perceber que te meteste numa carga de trabalhos.

Sim, foi complicado. Mas agora, está tudo a caminhar. Contudo, ainda foi necessário dar mais um passo. Para o meu amigo poder dar-lhes trabalho, era necessário um protocolo da sua instituição, mas não podia ser comigo. Ainda tentei uma associação que aceitasse enquadrá-los, mas não encontrei resposta. Acabei por promover um protocolo entre o Governo do Príncipe e a instituição desse meu amigo. E foi assim que as coisas se tornaram possíveis.

De algum modo, é a continuação da tua missão lá.

Exatamente. A minha missão nunca termina quando deixo o terreno. No caso do Príncipe, eu continuo, ainda hoje, a receber mensagens dos amigos que lá fiz, novos e mais velhos. E continuo a ajudar naquilo que posso.

O apoio em casa

Chegaste a pensar que eles ficassem a estudar em Lisboa.

Sim, porque aqui não há africanos. E, como eu conheço o terreno, tive receio de que eles não se adaptassem. Em Lisboa há mais enquadramento africano e um deles tem lá um irmão. Mas depois pensei que aqui eu estaria mais perto, podia acompanhá-los mais e mesmo controlá-los, pois eles vêm de um mundo muito diferente e não é nada fácil a adaptação. Ora eu sou responsável por eles.

Isso significa que, mesmo nas relações de proximidade, não foi sempre fácil.

Pois não. Eu sou muito exigente. E fiz-lhes saber que só vinham sob condições muito bem definidas, porque eu tenho a vantagem de conhecer o meio cá e o ambiente lá, ao passo que eles só conheciam o de lá. Houve algumas dificuldades, por vezes eles sentiram-se controlados, mas eu expliquei-lhes a situação e hoje eles reconhecem que estão transformados e que são já outras pessoas.

Resta acrescentar que esta aventura “louca” com dois santomenses – que continua – começou por ser com três. Mas o terceiro acabou por não poder vir. “Com muita pena minha”, garante a Graciela. Muito mais haveria para dizer. Mas parte do que fica calado dá para imaginar, não dá?

 

José Alves Jana
voluntário da SMV

 

* Graciela Pinheiro fez formação de base como professora do primeiro ciclo e depois fez uma licenciatura em administração escola. Foi nesta última competência que fez duas missões na ilha do Príncipe, no âmbito do projeto Mais valia, da Gulbenkian. De então para cá, nunca deixou de estar lá presente, embora à distância.