Quem somos, o que fazemos – António Pereira

António Pereira, professor e formador, fez parte da bolsa de voluntariado da Fundação Calouste Gulbenkian e integra a Ser Mais Valia desde a sua criação. Vamos ver o que nos diz para o conhecermos melhor..

 

 

 

GC (Graciela Pinheiro) – Como te defines, António?     

Nunca pensei numa autodefinição, mas talvez a minha característica mais marcante seja a motivação com que faço quase tudo no meu trabalho, mesmo quando o resultado é para esquecer. Gosto de me divertir e de divertir os que me rodeiam. Celebro sempre cada pequena coisa que a vida me dá. Recreando Camões, gosto de andar “solidário entre a gente” e de “espalhar a palavra como um missionário da língua portuguesa”, como diz um amigo meu. 😊.

GC – Fizeste parte do Projeto “Mais Valia” da Fundação Calouste Gulbenkian. Que motivações te levaram à candidatura?

Como nos últimos anos da minha carreira docente, optei por trabalhar no ensino noturno e nos cursos técnico-profissionais, tive muitos alunos (adultos e jovens adultos) dos PALOP. O conhecimento aprofundado das histórias das suas vidas fez nascer em mim a vontade de, um dia, vir a fazer voluntariado na área da educação nesses países. Logo, a “Mais Valia” apareceu na minha vida no momento certo.

GC – São muitas as missões que te têm conduzido até à Guiné-Bissau. Podes falar-nos do trabalho que tens lá realizado?

No meu trabalho oficial (língua portuguesa):

Nas parcerias SMV – Cooperação Portuguesa:

  • Formação KRIPOR, em formações de 100 horas, com os jovens bolseiros do Instituto Camões.
  • Funcionários da administração pública guineense (este ano com a Associação Industrial da Guiné-Bissau), em formações de 60 horas.
  • E ainda, fresquinha, fresquinha, a constituição do livro “Visita Guiada ao Interior da Língua – Aprenda Você Mesmo(a)”, a ser publicado em Bissau, com uma amostra representativa dos materiais criados para as formações SMV – Instituto Camões, desde 2016, e criação, com o inestimável trabalho do nosso amigo voluntário José Luz, de um e-book (já disponível em bit.ly/3xcAn8Z ).

Na parceria SMV – Fundação Calouste Gulbenkian: Professor na equipa de professores de língua portuguesa (com as colegas Graciela e Aida) no projeto de aulas à distância “Mais Conhecimento, Melhor Futuro”.

Com o coordenador dos inspetores-formadores dos polos de formação de língua portuguesa (Pedro Figueiredo – IC) em 12 regiões da Guiné-Bissau:

  • Formações intensivas anuais, desde 2022, com os inspetores-formadores, visando o aperfeiçoamento dos seus conhecimentos e competências nos domínios da língua portuguesa, pedagogia e didática.
  • Criação, este ano, de materiais de apoio para um projeto a iniciar em 2025, em que os inspetores irão orientar formações de 60 horas para funcionários da administração pública das regiões: manual do formando e guia do formador com orientações passo a passo e soluções de todas as atividades. Este trabalho ainda está em aperfeiçoamento, devendo ficar concluído até ao final de novembro.

Trabalho não oficial:

  • Acompanhamento na língua portuguesa, com fichas de trabalho e atividades orientadas de autocorreção, de funcionários do Hotel Coimbra (e respetivos familiares) e de professores e alunos do ensino superior de várias escolas em Bissau.
  • No PNR (“Português na Rua”), nas deslocações à Guiné, faço o acompanhamento na língua portuguesa com fichas, no local de trabalho, de seguranças e polícias que trabalham à noite (em bancos, hotéis, ministérios, etc.). É um dos trabalhos que mais me apraz fazer.
  • De dois em dois anos, Português e Francês do Turismo na ilha de Rubane, com os funcionários do Hotel Ponta Anchaca e também com a Solange (francesa que é dona do hotel).
  • Seminários no Hotel Coimbra e em escolas, universidades e centro de estudo de língua portuguesa e deslocações a estações de rádio em Bissau.
  • Formação pedagógico-didática para os professores do Centro Cultural Franco-Bissau-Guineense e seminários para os alunos (língua francesa).

GC – Estiveste em Cabo Verde onde trabalhaste com o Frei Silvino. Como foi essa experiência?

Foi um privilégio conhecer o Frei Silvino e trabalhar com os monitores e com as crianças e jovens nos dois centros que ele dirige, há mais de 20 anos, em bairros pobres (com um historial de droga e de grande violência no passado) nos arredores do Mindelo. Esse trabalho foi realizado com a associação de voluntariado “Para Onde?” Como estava alojado num dos bairros, tive oportunidade de viver o dia a dia com os habitantes e sentir-me parte da comunidade. Logo que tenha os fundos necessários para a deslocação e estadia, voltarei com muita emoção, não me esquecendo de levar uma garrafa de vinho verde ao querido Frei Silvino como lhe prometi!

GC – A tua missão de voluntário levou-te também a São Tomé e Príncipe. O que tens feito por lá?

Estive numa missão em 2014, da então “Mais Valia”, bem no sul do país, em Porto Alegre, alojado com os Leigos para o Desenvolvimento e a trabalhar com eles. O trabalho centrou-se na língua portuguesa e formação pedagógico-didática para os professores e noções básicas de comunicação em francês para os jovens que tinham o sonho que trabalhar na hotelaria.

Tem havido outras deslocações para trabalhar com a minha amiga Sónia, presidente da ONCG “Dimix”, podendo haver uma próxima ida em janeiro de 2025 para trabalhar com crianças e jovens da escola da comunidade piscatória de Santana (fora da capital) e orientar seminários noutras escolas da ilha e na Universidade de São Tomé e Príncipe, na capital.

GC – A tua sensibilidade e criatividade manifestam-se nas atividades que nos vais mostrando: escrita, fotografia, horta, culinária… Queres falar-nos um pouco das tuas paixões/interesses?

Na introdução da pergunta, referes quase tudo o que me motiva na minha vida quotidiana. À escrita, fotografia, horta e culinária, juntaria aquilo que mais me apaixona, que é o trabalho na sala de aula, sobretudo na didática da escrita (em particular a poesia haiku), e a criação de fichas de trabalho a partir de notícias, letras de canções ou histórias.

Embora goste muito de ler ficção, delicio-me a ler obras de pedagogia e didática e a anotar, no meu caderninho, princípios e ideias que me permitam melhorar o meu trabalho como professor e formador.

Finalmente, gosto muito, mas mesmo muito, de apanhar marisco, nomeadamente amêijoas e berbigão. Este ano, como passei uma boa parte do verão em Portugal e não em Bissau, aprendi, com um senhor idoso, setubalense de gema, a apanhar canivetes na praia da Comenda, espaço meio selvagem, não vigiado, na falda da Arrábida. E não é que tenho jeito para a coisa e fui aprovado com distinção pelo meu experiente instrutor?

GC – Em jeito de conclusão, queres reportar algo que consideres significativo e que mereça especial referência?

Nunca imaginei que, quando realizei a minha primeira missão no sul em São Tomé, em 2014, iria ter, em apenas dez anos, uma vida tão cheia de emoções, de interações com pessoas interessantes e com visões do mundo diferentes, de experiências novas e de oportunidades para criar, com liberdade, e encontrar soluções para os desafios e problemas.

Ao longo destes dez anos de uma nova vida que a SMV me tem proporcionado, entre as várias situações estranhas, divertidas ou insólitas que tenho vivido, gostaria de recordar uma que me marcou e que aconteceu na primeira missão.

A missão teve lugar em março/abril, na época das chuvas. Quando regressei, ao ver as fotos todas, a minha mulher perdeu-se de amores por São Tomé e desafiou-me a voltar com ela e a mostrar-lhe, no papel de guia turístico privativo, aqueles locais e paisagens tão estimulantes para a sua imaginação.

Cumpriu-se o plano e regressei em junho, com a minha companheira, às ilhas encantadas. Quando chegámos a Porto Alegre, onde tive feito a missão dois meses antes, apressei a rever e abraçar toda a gente e a ir visitar os sítios que já conhecia de cor e salteado. Ao chegar ao local onde tinha dado as aulas de francês (integrado nas ruínas da antiga roça de Porto Alegre), fiquei chocado com o que vi! Em vez da sala de aula, apenas um monte de entulho. Uns dias depois de eu ter terminado a missão, a sala ruiu completamente. Entre os escombros estava ainda o quadro com o sumário da última lição.

Sorte a minha e dos meus queridos “élèves” por não termos estado no sítio errado à hora errada…

Graciela Pinheiro
Voluntária da Ser Mais Valia