Da plataforma Zoom… às “teclaulas”!

“Divide as dificuldades em todas as partes que seja possível para melhor as resolveres.”
René Descartes

 

 

A Ser Mais Valia pediu-me um pequeno texto sobre o Kripor IV, formação de 13 bolseiros guineenses do Instituto Camões em Bissau,
Diante do papel, não sei por onde começar. A única frase que me ocorre é que foi a formação mais atípica que alguma vez orientei.
A previsão era que, dada a situação pandémica, as aulas, de Brejos de Azeitão para Bissau, decorressem pela plataforma Zoom.
Como já estávamos no mês de setembro e havia o risco de a formação ser interrompida pela viagem, a qualquer momento, dos bolseiros para Lisboa, foi-me pedido que fosse enviando trabalhos à Cooperação Portuguesa de Bissau (CPB), que os fazia chegar aos alunos, os recolhia resolvidos, fotografava-os e reenviava-mos. Eu imprimia-os, lia-os e enviava feed-back para a autocorreção.
Para aligeirar os procedimentos desta morosa cadeia de comunicação, ocorreu-me a ideia de montar uma espécie de estudo acompanhado através do Facebook. Com a ajuda da CPB, os alunos que não as tinham criaram contas de e-mail e de Facebook e foi criado, também no Facebook, o grupo “Bolseiros 2020-2021”.
Dada a debilidade da Internet na Guiné e a regra de, em grupos do Facebook, não se poder usar a chamada de vídeo ou áudio com mais de oito pessoas em simultâneo, no dia 14/9 iniciámos a aventura das “teclaulas”, ou seja, interações exclusivamente por escrito.
Em boa hora foi tomada a decisão, pois, por razões burocráticas, o contrato com a operadora que iria permitir o uso da plataforma Zoom não chegou a concretizar-se.
Perdida a hipótese de caçar com cão, todo o trabalho foi reorganizado à medida do gato com que podíamos contar: foram otimizadas as regras de participação nas “teclaulas” e explorados até ao limite os recursos disponíveis para a comunicação: Facebook (o de grupo e o de cada um nas mensagens privadas) e e-mail.
Aulas das 9h00 às 12h00 (hora de Bissau, de segunda a sexta, com quatro módulos: Leitura/compreensão escrita, funcionamento da língua, compreensão oral de canções portuguesas (com o link a ser enviado em cada aula) e expressão escrita, seguida de autocorreção (lançada na aula e desenvolvida em interações com cada aluno ao longo do dia).
A formação foi decorrendo de forma relativamente satisfatória. Muito na base de um trabalho diário de criação e/ou adaptação de documentos e de procura de soluções para cada novo problema que ia surgindo.
O que mais me preocupava era a possibilidade de não conseguir “agarrar” os alunos exclusivamente através da palavra e que não se criasse o espírito de turma, dado que ninguém se conhecia e cada um estava em sua casa. Afinal, os receios eram infundados. A partir da segunda aula, já todos “falavam” pelos cotovelos e o prof. rapidamente aprendeu a usar os stickers, gifs e emojis adequados a cada situação.
E o ambiente ficou tão descontraído que, como numa sala de aula física, até houve um forte desentendimento numa aula entre dois alunos por causa de um comentário. Quase chegaram a vias de facto… virtuais! E quando eu pensava que essa ia ser a mancha do curso, e que muito me incomodava, recebi, em privado, a mensagem, em destaque neste artigo, de um dos protagonistas do incidente.

Em breve, completa-se mais uma edição do KRIPOR, com duração de cinco semanas e 100 horas de formação. Dadas as limitações, os resultados superam as (minhas) expectativas, o que fica a dever-se muito à disponibilidade dos alunos (sobretudo nas etapas da autocorreção) ao longo de cada dia. A aposta, mesmo à distância, de os levar à descoberta das respostas e de os fazer refletir, tendo em vista a autorregulação da expressão escrita, foi ganha.
Apesar de muito cansativa, esta experiência pedagógica “quase radical” mostrou-me que, de facto, a necessidade aguça o engenho. Ficam novos materiais e novas ideias a integrar em futuras formações e no “Português em A(c)ção!”, plataforma da nossa associação.
Mesmo com a distância a que as circunstâncias obrigam, no momento em que este texto estiver a ser lido,estará concluída mais uma festa da língua portuguesa. Direi com satisfação: MISSÃO CUMPRIDA!

António Pereira (20/10/20)
voluntário da SMV