4 PERGUNTAS A… RAUL MANARTE*

1- Raul, estive a ler sobre si e descobri um mundo fascinante: é psicólogo humanitário, compositor, músico e fotógrafo. Quem é o Raul?

Não sei responder a essa pergunta 🙂

2- Tem presenciado e vivido em locais de desespero humano e, aparentemente, de beco sem saída. Como convive com isso e se mantém à tona?

Primeiro lembro-me que a grande questão quando falamos de “desespero humano” e “beco sem saída” não é como é que EU lido com isso mas sim como é que as pessoas que estão desesperadas e sem saída lidam com isso… Isso dá perspetiva, relativiza os meus stressores. Só isso já é uma forma de eu me tornar mais resiliente: lembrando-me que vejo verdadeira resiliência em todo o trabalho humanitário que fazemos. Em relação a estratégias mais práticas para lidar com este tipo de trabalho algumas serão: manter rotinas (coisas que gostamos de fazer, atividades de lazer, atividades sociais, desabafar com colegas e amigos e família) e estabelecer limites (reconhecer que não consigo trabalhar mais de X horas, não consigo ir hoje, que esta ou aquela tarefa me desgasta e pondero diminuir ou cessar). Quando voltamos do terreno é importante ajustar expectativas: a minha família e amigos podem não entender a minha experiência e eu não lhes posso “exigir isso”. Procuro em colegas que passaram o mesmo esse entendimento, desabafo com eles. Também tento ajustar o meu nível de “entrega”… há fases mais ativas, mais “mão na massa”, há outras menos intensas. Tudo isto porque, a meu ver, conseguimos contribuir mais se nos prepararmos para a maratona e não para o sprint.

3- Na recente formação da S.M.V. sob o tema «ESTRANGEIROS», em que esteve presente como orador, deu a conhecer a realidade do campo de refugiados de MORIA na Grécia. Quando lhe perguntaram como era possível existir tal desumanidade respondeu: “Existe porque nós permitimos; existe porque não levantamos o rabo do sofá”. Pergunto-lhe: como e de que formas podemos e devemos sair do sofá?

Posso dividir em duas grandes formas: trabalho humanitário e ativismo (ou mobilização cívica). Em relação ao trabalho humanitário podemos envolver-nos direta ou indiretamente. De forma direta, podemos ir para o terreno, quer seja profissionalmente com uma ONG que contrata, quer seja de forma voluntária. Em qualquer um dos cenários é necessário perceber se a ONG tem marcadores de qualidade como: fazer avaliação de necessidades, envolver a população local (preferencialmente sendo uma ONG local), fazer avaliação de impacto, ter mecanismos de transparência de fluxos financeiros, ter mecanismos de procura e diminuição de abuso de poder e assédio sexual, etc. Indiretamente, podemos fazer donativos para estas ONG.

Em relação ao ativismo (ou cidadania, ou mobilização cívica) este, provavelmente, deveria ser a nossa “base”, algo que integramos na rotina para o resto da vida. Tem um espectro enorme de ações possíveis: procurar informação ativamente, partilhar essa informação, ter disponibilidade para falar sobre essa informação e sobre esses assuntos (preferencialmente cara a cara mas sempre com uma atitude de “o que vamos fazer” em vez de “quem tem razão?”), fazer ativismo online (petições online, cartas, campanhas de partilha, etc.), juntarmo-nos a grupos de ativismo pelas causas que nos apaixonam, criar esses grupos caso seja pertinente, envolvermo-nos em ações diretas não violentas (dramatizações públicas para chamar a atenção para a causa, mobilização de outras pessoas, marchas, conferências de imprensa, criar correntes de pressão a decisores, etc., etc.). Aqui têm uma base de dados com centenas de campanhas de ativismo, os resultados que tiveram e as táticas que utilizaram: https://nvdatabase.swarthmore.edu/

4- Tendo conhecimento da existência de tantas causas e de que o trabalho é potencialmente infinito e inalcançável, como prioriza e a que causas dedica o seu tempo, esforço e recursos?

Essa é uma excelente questão. Autores como o Peter Singer debruçam-se sobre a questão do “Altruísmo eficaz” e como conseguimos ter o maior impacto humano com as nossas ações. Rapidamente percebemos que, por exemplo, fazendo donativos para determinadas “causas” esse donativo poderá implicar mais vidas salvas do que para outras causas… Mas eu alargo ainda mais a questão – empatia emocional e responsabilidade política. Ou seja, as coisas que eu vi, que eu experienciei provocam muito mais empatia emocional em mim. É por isso que Cabo Delgado ou Venezuela me “tocam” mais do que o Iémen – e não há nenhuma razão emocional para isso. Penso que isso tem um lado bom e um lado mau. O mau é que apenas me mexo por aquilo que me “tocou”, o bom é que o que me “toca” motiva-me mais e torna-me mais capaz de motivar outros.

Em relação à responsabilidade política, ela vai de encontro à eficácia: se calhar serei mais eficaz, enquanto europeu, a pressionar o governo português e a Comissão Europeia acerca da questão dos refugiados, do que a pressionar o governo moçambicano sobre Cabo Delgado… Mas esta questão é muito complexa… Às vezes uma música minha tem maiores efeitos do que duas horas de conversa… às vezes uma foto…

A minha estratégia é: pensar na maratona, pensar em contributos de grande envolvimento pessoal e outros de pouco (para manter a maratona) e ir refletindo sobre estas questões…

* Raul Manarte é um jovem multifacetado – psicólogo humanitário, músico e compositor, fotógrafo, ativista e voluntário dos Médicos Sem Fronteiras.

Esteve no campo de refugiados de Mória, na Grécia, e contou-nos como foi.

Esteve em missão humanitária na Guiné-Bissau e daí resultou a música «Na Bissau» que foca os números do tráfico de crianças e da mutilação genital feminina.

Quando lhe perguntam sobre a sua atitude épica, Raul responde: “Eu não tenho uma atitude épica, eles é que têm essa atitude”. E fala-nos de empatia emocional e responsabilidade política.

Seria bom estarmos todos muito atentos à sua voz.

 

Recolha de Isabel Amorim

Voluntária da SMV