Há uma Crise de Refugiados na Europa?

Há 10 anos a trabalhar com o Programa Alimentar Mundial (PAM) das Nações Unidas, Pedro Matos ajuda-nos a olhar o problema dos refugiados desmontando alguns preconceitos e mitos.

Num momento em que discursos “protecionistas” e de exclusão ganham volume, é importante ter uma visão alargada do que são movimentos migratórios a uma escala global. Falar de crise de refugiados na Europa é propagar um discurso erróneo se comparado com o que se passa em outras partes do mundo. Desta forma, a visão distorcida ganha forma de verdade e impede uma verdadeira ação de solidariedade e sustentabilidade a nível planetário.

Pedro Matos afirma “Não há uma crise de refugiados na Europa. A Alemanha, que foi quem mais refugiados recebeu na Europa, deu asilo a 1 milhão de pessoas que serão integrados num país de 82 milhões de habitantes. Em Portugal recebemos uns 2 mil refugiados, nem sequer um por freguesia, e fomos dos países mais generosos. Só a muito custo iremos conseguir cruzar-nos alguma vez com um refugiado resultado da “crise de refugiados” de que falamos.”  Pedro Matos ajuda a compreender o fenómeno comparando com situações como as da Jordânia, um país com uma população idêntica à de Portugal (9,4 milhões de habitantes) que recebeu meio milhão de refugiados do conflito na Síria, o que equivaleria a 25 milhões de refugiados na Europa. De acordo com os números mais recentes das Nacões Unidas os 500 milhões de habitantes velho continente receberam 1.8 milhões de refugiados nos últimos 4 anos.

Como se cria então esta “Crise”, é a pergunta que se coloca.  O direito ao pedido de asilo não se sobrepõe ao direito do país a quem é pedido de o aceitar ou rejeitar. Contudo, até que tal aconteça o requerente, o refugiado, tem o direito a permanecer no país a quem solicita. Ou seja, não se trata de um pedido de visto, feito a partir do país de onde se quer sair. É um pedido realizado no país onde se chega, pedindo asilo. A situação agrava-se humanitariamente a partir do momento em que as fronteiras nos países ocidentais se fecham por políticas de barreira que transferem para as companhias aéreas a verificação de legalidade de circulação ou da legitimidade do pedido de asilo, numa espécie de “outsourcing de responsabilidades” empurrando pessoas em desespero a encontrar outras formas de chegar a territórios mais seguros. O acordo negociado pela União Europeia com a Turquia é outro outsourcing de responsabilidade. Este país recebeu 4 milhões de refugiados e mantem-nos longe das fronteiras europeias em troca de uma imensa soma de dinheiro. “Quem dera às Nações Unidas ter o dinheiro para assistir refugiados que a EU entregou à Turquia. Há neste momento 65 milhões de deslocados devido a conflitos e perseguições. Não estamos a falar de migração económica, esses são muito mais” esclarece-nos Pedro Matos. Como também nos disse na primeira parte desta entrevista, a evidência demonstra que evitar emergências em vez de responder a elas sai muito mais barato. Facilmente se deduz que empurrar refugiados para o Mediterrâneo ou para rotas de insegurança, promovendo redes de exploração do desespero, não serão as medidas necessárias para evitar emergência.

Trabalho de competências

Pedro Matos define-se como um profissional da ajuda humanitária e justifica: “O que faço diariamente no meu trabalho são operações humanitárias, que ajudam as pessoas, mas é um emprego, e não necessariamente melhor do que os outros. Com 

operações gigantes de centenas de milhões de dolares por ano em cada país, não é muito diferente de gerir uma grande empresa. Recrutamento, compras, logística, monitoria, avaliação. No Uganda o PAM tem 250 pessoas, no Bangladesh tem 160 só para responder às necessidades alimentares dos refugiados Rohingya da Birmânia. A minha formação de base é o urbanismo, não é isso que faço aqui. Neste meio profissional, o percurso e a experiência valem muitas vezes mais que a formação.” Esta é a sua sexta “carreira” profissional e em todos os momentos teve que enfrentar a aprendizagem e desenvolver o desempenho.  “É possível substituir a formação pela experiência, reforçá-la. A formação dá-nos capacidade de pensar de uma certa forma, mas não substitui a experiência. Há sempre a necessidade inicial de adaptação, todas as novas integrações têm curvas de aprendizagem, e isso não acontece uma só vez na vida, acontece sempre que se integra um novo desafio.”

Apresentamos os objetivos da Ser Mais Valia e alguns dos projetos que integramos e as missões realizadas, falamos dos cuidados na seleção dos voluntários, no processo de formação e na preocupação com a gestão de expectativas e até de protagonismos em relação a cada missão.   Estando há tanto tempo no terreno e certamente, tendo-se cruzado com muitas ONGD e voluntários, quisemos saber o que pensa do papel do voluntariado, particularmente o que é realizado em projetos de desenvolvimento. “O voluntariado de curta duração é, habitualmente, muito mais importante para quem vai do que para quem recebe. Isso não é necessariamente mau, tem é que ser entendido como uma aquisição e não como uma doação. Por isso vejo com bons olhos que em muitas instituições o voluntariado seja pago, isto é, o individuo paga para viver uma experiência normalmente radical, de confronto com outros modos de vida, de fazer e de ser. Há custos reais no acolhimento dos voluntários, e não se trata apenas do alojamento e estadia, trata-se da adaptação do visitante, da atenção que necessita, dos ritmos que altera, em resumo, do impacto efetivo do voluntário na vida da organização de acolhimento, que nem sempre é tão benéfico como o voluntário imagina. É importante que se tenha em conta que o nosso conhecimento do outro é muitas vezes feito de clichés e que pelo menos o primeiro mês é um tempo de ligar culturas, de fazer o reality check, de aprender. E isso é mais evidente ainda no caso do voluntariado indiferenciado que é muitas vezes voluntarismo improdutivo. O voluntário mais especializado com transferência de competênciase promotora de conhecimento é diferente, e é possível acrescentar mais-valias mesmo em missões de um mês, especialmente se precedida de uma preparação para a missão. O voluntário sabe o que vai fazer, o seu conhecimento ou a sua competência técnica, são o que efetivamente faz falta e são entendidos como necessários pelo “terreno”. Mesmo em emergência, esta pode ser uma forma de voluntariado, mas não é a mais comum.”

Mesmo no final da nossa conversa Pedro Matos falou ainda dos seus hobbies. O Lusophone Film Fest (mostra de cinema Lusófono), que está já em nove países (Quénia, Tanzania, Tailândia, Austrália, Cambodja, China, Suiça, India e Bangladesh) e que tem permitido dar a conhecer a diversidade de produção cinematográfica da lusofonia. Este festival é realizado sempre em parceria com instituições locais e com residentes, na sua maioria falantes de português, muitos deles em sítios onde Pedro Matos nunca foi. A iniciativa está aberta a todos os que se queiram aventurar a organizar uma mostra de cinema na sua cidade, tendo para isso apenas que escrever para lusophonefilmfest@gmail.com.