Memória de missão… na Guiné

Em Setembro de 2006 o António estava na Guiné na missão Kripor.  Na altura escreveu assim:

“A realização do curso tem despertado vivo interesse. De vez que em quando, vêm pessoas, sobretudo jovens, visitar-me à sala, pedindo sugestões de atividades e materiais para poderem aperfeiçoar os seus conhecimentos de língua portuguesa. Há uma semana, recebi a visita de um major guineense que é professor de Português no exército da Guiné. Considerando as condições em que ele e outro professor trabalham (sem fotocópias e com apenas quadro, giz e um manual desatualizado), queria saber se eu podia dar sugestões de caráter prático para rentabilizar o trabalho e gerar aprendizagens duradouras. Com os poucos recursos que tinha, tentei dar-lhe algum conforto e solidariedade, prometendo organizar algumas ideias simples numa filosofia “se não tens cão, caça com gato, com rato ou até com as pulgas do rato”.

Passados uns dias, novo pedido, agora do comandante da cooperação militar portuguesa e do tenente guineense que supervisiona o curso: seria possível disponibilizar uma hora do meu tempo para falar sobre língua portuguesa aos 100 militares que frequentam o curso? Uma espécie de motivação para professores e alunos. Embora não fizesse na altura ideia do que poderia dizer a tão incomum plateia, pus o meu melhor sorriso e disse que o faria com todo o gosto.

E lá chegou o dia da palestra em Cumeré (para Norte, a cerca de duas horas de Bissau).

Fomos para um refeitório da época colonial com mesas de cimento e sem quadro. Das fotocópias previstas só uma foi tirada em tempo útil. 15h30, um calor e humidade extremos. Achei que ia ser um fracasso. A transpirar até nos sítios mais inconvenientes (!), percebi que não havia recuo. E lá me atirei à palestra. Aqueles duzentos olhos a branquejar num mar de negro, olhavam para mim, mas não reagiam às graças que eu ia introduzindo aqui e ali.

Nas sugestões para uma expressão oral eficiente, dei-lhes como modelo a seguir o presidente Obama. Até o imitei nos gestos, no olhar e na postura. Só faltou pintar-me de negro. Reação? Não houve.

Quando cheguei às sugestões para a escrita, questionei-me interiormente se deveria fazer o que tinha previsto: incentivá-los a escrever pequenas coisas num caderno: ideias, reflexões e… poemas.

Vencendo as reticências, falei da filosofia subjacente aos poemas japoneses haiku e do modo de construção. Tudo falado, uma vez que não havia quadro…

Li dois poemas que se adaptavam à paisagem e ao clima da Guiné-Bissau.

Apontei para a parada (todos seguiram o meu gesto com a cabeça) e disse que tinha ali alinhavado um haiku dedicado a todos eles:

  A parada ao sol

contempla o azul do céu.

  A chuva cairá!

Para concluir a incursão pela poesia, apontei para uma pedra escura que tinha em cima da minha mesa e citei de forma livre Sebastião da Gama, dizendoo poeta é aquele que afasta a pedra áspera e escura (afastei a pedra) e mostra a flor que há por detrás.

E apareceu a florinha amarela colhida momentos antes do início da sessão. Encharcado em transpiração e com uma cascata de gotas de suor a caírem-me da testa para os olhos, olhei para eles à procura de sinais de aprovação para aquela encenação. Nada!

Pensei para comigo: “Vou mas é encerrar esta m… que já vi que isto já deu o que tinha a dar!”

Assim fiz. Como levava o meu pequeno computador e um aluno do curso em Bissau me tinha emprestado umas colunas, pus o “Se eu voltasse atrás” (Pólo Norte), tendo antes dado sugestões sobre como poderiam desenvolver as competências de compreensão oral com canções portuguesas.

Como a acústica do edifício era má, pedi ao militar que estava à minha frente para pôr as mãos no ar a servir de suporte ao computador. Pus uma coluna em cada mão e levantei os braços em pose de Cristo crucificado (era como me sentia…).

Pouco depois de a música estar a tocar, comecei a mexer os braços para trás e diante e a simular uns passinhos de dança ao ritmo da canção. Ato contínuo, todos levantaram os braços a imitar-me e pouco depois deram-me… uma salva de palmas! Fiquei de boca aberta, literalmente de queixo caído.

Aproveitando a maré, passei também o Boss Ac (hip hop) com “Estou vivo e vivo”.

Chamei um dos profs de Português para junto de mim. Pus-lhe uma coluna na mão, abracei-o e dançámos os dois. Foi a desbunda total: palmas, dança, fotografias, gargalhadas sonoras. Uma festa!

No final, um jovem pediu para falar. Quis, em nome de todos os colegas, agradecer a minha ida ao quartel e a palestra que, segundo ele, iria ser muito útil a todos. Acrescentou que gostava de escrever umas coisinhas, mas sempre tinha tido dúvidas se era algo que devesse fazer. Com a minha intervenção, não tinha mais dúvidas e iria passar a escrever. Mais palmas e o coração a derreter-se-me numa fraqueza emotiva tão forte, que tive de fazer um esforço e peras para conter uma lagrimita que teimava em querer sair. Agradeci dizendo que as palavras acabadas de proferir eram a melhor recompensa para o meu trabalho. Uma medalha valiosa! Tinha entrado civil e ia sair dali um general. Riram-se muito.

Logo de seguida, uma jovem militar pediu para ler um poema (não sei se escrito na sessão). Botou um vozeirão e leu um manifesto revolucionário (amanhã, dia 24, é a comemoração da data da independência, proclamada pelo PAIGC em 1973).

Depois de assistir aos treinos (a marcharem e a cantarem uma canção) para o desfile em que vão participar nas comemorações, lá vim aos solavancos nos buracos da estrada de regresso a Bissau.

 

Missão cumprida!

Abrasu.

António

 

A realização do curso tem despertado vivo interesse. De vez que em quando, vêm pessoas, sobretudo jovens, visitar-me à sala, pedindo sugestões de atividades e materiais para poderem aperfeiçoar os seus conhecimentos de língua portuguesa. Há uma semana, recebi a visita de um major guineense que é professor de Português no exército da Guiné. Considerando as condições em que ele e outro professor trabalham (sem fotocópias e com apenas quadro, giz e um manual desatualizado), queria saber se eu podia dar sugestões de caráter prático para rentabilizar o trabalho e gerar aprendizagens duradouras. Com os poucos recursos que tinha, tentei dar-lhe algum conforto e solidariedade, prometendo organizar algumas ideias simples numa filosofia “se não tens cão, caça com gato, com rato ou até com as pulgas do rato”.

Passados uns dias, novo pedido, agora do comandante da cooperação militar portuguesa e do tenente guineense que supervisiona o curso: seria possível disponibilizar uma hora do meu tempo para falar sobre língua portuguesa aos 100 militares que frequentam o curso? Uma espécie de motivação para professores e alunos. Embora não fizesse na altura ideia do que poderia dizer a tão incomum plateia, pus o meu melhor sorriso e disse que o faria com todo o gosto.

E lá chegou o dia da palestra em Cumeré (para Norte, a cerca de duas horas de Bissau).

Fomos para um refeitório da época colonial com mesas de cimento e sem quadro. Das fotocópias previstas só uma foi tirada em tempo útil. 15h30, um calor e humidade extremos. Achei que ia ser um fracasso. A transpirar até nos sítios mais inconvenientes (!), percebi que não havia recuo. E lá me atirei à palestra. Aqueles duzentos olhos a branquejar num mar de negro, olhavam para mim, mas não reagiam às graças que eu ia introduzindo aqui e ali.

Nas sugestões para uma expressão oral eficiente, dei-lhes como modelo a seguir o presidente Obama. Até o imitei nos gestos, no olhar e na postura. Só faltou pintar-me de negro. Reação? Não houve.

Quando cheguei às sugestões para a escrita, questionei-me interiormente se deveria fazer o que tinha previsto: incentivá-los a escrever pequenas coisas num caderno: ideias, reflexões e… poemas.

Vencendo as reticências, falei da filosofia subjacente aos poemas japoneses haiku e do modo de construção. Tudo falado, uma vez que não havia quadro…

Li dois poemas que se adaptavam à paisagem e ao clima da Guiné-Bissau.

Apontei para a parada (todos seguiram o meu gesto com a cabeça) e disse que tinha ali alinhavado um haiku dedicado a todos eles:

  A parada ao sol

contempla o azul do céu.

  A chuva cairá!

Para concluir a incursão pela poesia, apontei para uma pedra escura que tinha em cima da minha mesa e citei de forma livre Sebastião da Gama, dizendo

o poeta é aquele que afasta a pedra áspera e escura (afastei a pedra) e mostra a flor que há por detrás.

E apareceu a florinha amarela colhida momentos antes do início da sessão.

Encharcado em transpiração e com uma cascata de gotas de suor a caírem-me da testa para os olhos, olhei para eles à procura de sinais de aprovação para aquela encenação. Nada!

Pensei para comigo: “Vou mas é encerrar esta m… que já vi que isto já deu o que tinha a dar!”

Assim fiz. Como levava o meu pequeno computador e um aluno do curso em Bissau me tinha emprestado umas colunas, pus o “Se eu voltasse atrás” (Pólo Norte), tendo antes dado sugestões sobre como poderiam desenvolver as competências de compreensão oral com canções portuguesas.

Como a acústica do edifício era má, pedi ao militar que estava à minha frente para pôr as mãos no ar a servir de suporte ao computador. Pus uma coluna em cada mão e levantei os braços em pose de Cristo crucificado (era como me sentia…).

Pouco depois de a música estar a tocar, comecei a mexer os braços para trás e diante e a simular uns passinhos de dança ao ritmo da canção. Ato contínuo, todos levantaram os braços a imitar-me e pouco depois deram-me… uma salva de palmas! Fiquei de boca aberta, literalmente de queixo caído.

Aproveitando a maré, passei também o Boss Ac (hip hop) com “Estou vivo e vivo”.

Chamei um dos profs de Português para junto de mim. Pus-lhe uma coluna na mão, abracei-o e dançámos os dois. Foi a desbunda total: palmas, dança, fotografias, gargalhadas sonoras. Uma festa!

No final, um jovem pediu para falar. Quis, em nome de todos os colegas, agradecer a minha ida ao quartel e a palestra que, segundo ele, iria ser muito útil a todos. Acrescentou que gostava de escrever umas coisinhas, mas sempre tinha tido dúvidas se era algo que devesse fazer. Com a minha intervenção, não tinha mais dúvidas e iria passar a escrever. Mais palmas e o coração a derreter-se-me numa fraqueza emotiva tão forte, que tive de fazer um esforço e peras para conter uma lagrimita que teimava em querer sair. Agradeci dizendo que as palavras acabadas de proferir eram a melhor recompensa para o meu trabalho. Uma medalha valiosa! Tinha entrado civil e ia sair dali um general. Riram-se muito.

Logo de seguida, uma jovem militar pediu para ler um poema (não sei se escrito na sessão). Botou um vozeirão e leu um manifesto revolucionário (amanhã, dia 24, é a comemoração da data da independência, proclamada pelo PAIGC em 1973).

Depois de assistir aos treinos (a marcharem e a cantarem uma canção) para o desfile em que vão participar nas comemorações, lá vim aos solavancos nos buracos da estrada de regresso a Bissau.

 

Missão cumprida!

Abrasu.

 

António