A Língua Portuguesa como desafio e tarefa
O português é uma língua falada por 260 milhões de pessoas nos vários continentes. Em 2100 serão já 487 milhões, 276 milhões dos quais em África. É hoje a 6ª língua mais falada no mundo (depois do mandarim, espanhol, inglês, hindi e árabe); a 5ª mais usada na internet (inglês, chinês, espanhol, árabe e português), a 3ª no Facebook. E é a língua mais falada no hemisfério sul.
Bastam estes números para percebermos a dimensão global desta língua e das potencialidades que ela oferece. Falar português, ler e escrever em português é uma forma de poder: poder exprimir-se e pensar numa grande língua e poder aceder diretamente a um mundo de obras escritas, faladas e cantadas de todo o mundo. O português é uma língua de comunicação, de cultura e de ciência.
Afirmar o português não tem de ser, nem é, negar as outras línguas, quer as mais faladas, quer as menos faladas, mesmo nos territórios onde o português é língua oficial. Uma pequena língua em termos de falantes é sempre um grande monumento cultural a respeitar e a preservar na medida do possível.
CPLP
Deixemos de lado o caso de Portugal, onde o português partilha, desde 1999, o estatuto de língua oficial com o mirandês (10.000 a 20.000 falantes).
No Brasil, o português partilha com o libras o estatuto de língua oficial, mas são ali faladas mais de 270 línguas de 305 etnias.
Em Angola, o português é uma língua oficial entre várias outras (umbundo, quimbundo, congo, chócue, ganguela…) e com dezenas de dialetos. Mas o português é já a primeira língua para 40% da população e 71% afirmam falá-la em casa.
Em Moçambique, a situação já é diferente: o português é a língua oficial, mas apenas 50% da população fala português, e apenas 10% a considera como a sua língua materna. Além do português, são faladas o macua e o changana e mais de quatro dezenas de outras línguas. À volta de Moçambique domina o inglês, pelo que o país sente uma forte atração por esta língua.
Em Cabo Verde, o português é a língua oficial e, por isso, da administração, do ensino e da comunicação social. Mas o crioulo cabo-verdiano é a língua das relações quotidianas de proximidade.
Em São Tomé e Príncipe, o português é falado praticamente por todos os naturais, embora apenas 50% a considerem a sua língua materna. O crioulo é também uma língua com muita expressão local.
Em Timor_Leste, o português e o tétum partilham o estatuto de língua oficial e o indonésio e o inglês são reconhecidas como línguas de trabalho. Existem ainda umas 15 línguas nacionais.
Guiné-Bissau
Na Guiné-Bissau, a língua oficial é o português, que é a língua da administração e do ensino. Contudo, apenas 15% da população fala português, enquanto a grande maioria, 90%, se exprime habitualmente em crioulo ou Kriol, que é também uma língua muito usada na comunicação social. Grande parte da população fala ainda uma das pelo menos 18 línguas das várias etnias: balanta, mandinga, manjaco, mancanha, papel, fula… Os falantes destas línguas com frequência não entendem a fala na língua das outras etnias.
Para as pessoas comuns, é difícil o acesso ao português. A vida é feita em crioulo, a comunicação social e até a publicidade, porque se dirigem às pessoas, não menosprezam o crioulo e mesmo nas repartições públicas o atendimento é feito em crioulo. A estrutura gramatical do crioulo cria dificuldades específicas no salto para a expressão em português, por exemplo ao nível das concordâncias. Por outro lado, a expressão falada do português usa bastante as vogais abertas, como no Brasil, o que cria alguns problemas na grafia das palavras e mesmo no domínio da flexão verbal. É fácil encontrar na rua cartazes e anúncios com falhas no português.
Quanto ao ensino do português, é uma aposta oficial, embora as escolas tenham um funcionamento muito deficiente. Quer nas escolas, quer noutras estruturas, é fácil encontrar professores de português que falam muito mal essa língua que para eles é, no mínimo, não a sua língua primeira.
A Guiné-Bissau tem uma população de cerca de 1.700.000 habitantes, dos quais cerca de 500.000 habitam na capital, Bissau. Portanto, a maioria da população vive no interior, muito marcada pela cultura e pela fala das respetivas etnias. Como reação ao processo de ocidentalização, entre a população mais rural ou mais tradicional tem bastante força uma recusa, uma certa “raiva” contra a cultura ou do modo de vida da Praça (ou da Prasa), a zona central, mais urbana e mais ocidentalizada de Bissau. Neste conflito cultural, o português é naturalmente identificado como parte integrante dessa vida recusada. Há ainda quem faça a identificação do português como a língua do colonizador, o que não a coloca em bom lugar na luta por uma identidade liberta do colonialismo e dos seus vestígios.
A Guiné-Bissau encontra-se rodeada de países de língua francesa e faz parte da francofonia. É fácil de perceber que é forte a atração por essa língua, mesmo como alternativa ao português. Aliás, o Centro Cultural Franco-Bissau-Guineense (o centro cultural francês) tem tido um trabalho muito ativo a favor da língua que representa. O português é ali defendido, digamos assim, pelo Centro Cultural Português e pelo Centro Cultural Brasileiro, pelo que o português do Brasil tem ali uma expressão significativa. Além disso, o português está a ser objecto de um cada vez maior interesse nos países vizinhos.
Na literatura, tanto quanto foi possível apurar, começou por dominar a escrita em português, mas pouco a pouco a expressão em crioulo tem vindo a conquistar cultores. Hoje é fácil encontrar autores que tanto escrevem em português como em crioulo. Na música popular, a expressão em crioulo é dominante, sem esquecer as canções tradicionais com origem nas várias etnias, naturalmente nessas línguas.
Mas a literatura e o seu poder sobre a língua e os falantes não se reduz à escrita, implica também a edição, a distribuição e a compra da literatura publicada. Ora, na Guiné-Bissau este sistema é muito incipiente e frágil. Só existe uma livraria, que é sobretudo alfarrabista de livros deixados de antes da independência, e um posto de venda de livros religiosos e dicionários. E são poucas e de pequena tiragem as obras publicadas, porque o universo de potenciais compradores de uma obra é da ordem das cem pessoas. “As pessoas não leem”, ouve-se por todo o lado onde se aborda esta temática. Apesar do inegável interesse pela língua.
Em recente missão na Guiné-Bissau, no âmbito do “Projeto de reforço de competências em Língua Portuguesa na Administração Pública da Guiné-Bissau”, uma parceria do Centro Cultural Português em Bissau e da associação Ser Mais Valia, foi fácil aos voluntários da associação perceber um grande interesse pelo português e não apenas nos formandos que puderam encontrar em situação de aula. O interesse pelo português sai à rua com a maior das facilidades.
5 de Maio
A decisão da 40ª Conferência Geral da UNESCO, a 25 de Novembro de 2019, que oficializou o dia 5 de maio como Dia Mundial da Língua Portuguesa não foi, portanto, um acontecimento marginal às grandes questões do mundo. O português é, como vimos, uma das grandes línguas e é por isso língua oficial ou língua de trabalho de grandes agências internacionais (União Europeia, UNESCO, CPLP, OMS, OEA, Mercosul, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, Organização dos Estados Ibero-Americanos para a Educação, a Ciência e a Cultura e União Africana entre muitas outras). Acresce ainda que, além de língua falada nos países de expressão oficial portuguesa, a existência de fortes comunidades portuguesa em muitos outros países do mundo dá-lhe uma expressão global. E é esta expressão global que manifesta nos estudos sobretudo de língua portuguesa mas também de cultura portuguesa um pouco por todo o mundo.
Além disso, o previsível aumento significativo de falantes de português em África junta-se à grande questão a nível mundial que é o necessário desenvolvimento humano, logo económico e social, de África no próximo século. África não está condenada a ficar à margem do processo de desenvolvimento que se deseja para todo o mundo.
Mas a criação do Dia Mundial da Língua Portuguesa não é “o” ponto de chegada. É sobretudo a abertura de uma agenda de trabalhos que só pode ser mais ambiciosa que a que estava em exercício e que conduziu a esta decisão.
José Alves Jana