Missão em sobressalto (II)

Projeto de reforço de competências em Língua Portuguesa na Administração Pública da Guiné-Bissau.

 

Notícia de uma aventura

 

O António Pereira, a Maria Espírito Santo e o José Alves Jana estiveram em Bissau no âmbito do projeto “Reforço de competências na Língua Portuguesa” destinado a funcionários dos vários ministérios da Guiné-Bissau. Cada um tinha previstas duas turmas de 30 alunos, 3 horas por dia cada uma, durante quatro semanas, ou seja 60 horas por turma de formação. A estratégia era essencialmente prática e apostada na autocorreção. Era o primeiro resultado de uma parceria entre a Ser Mais Valia e o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua.

O António estava desde o início de fevereiro com uma turma do Ministério da Administração e outra do Ministério da Agricultura. A Maria e o Jana juntaram-se-lhe no fim desse mês. Ela para assumir as turmas de funcionários do Ministério da Saúde e do Ministério da Mulher, e ele as do Ministério da Economia e Finanças e da Justiça. Tudo estava combinado, a metodologia afinada e os materiais preparados, e já em uso por parte do António.

Foi a caminho do aeroporto que a Maria e o Jana souberam do “golpe de estado” na Guiné-Bissau. A decisão de seguir manteve-se, pois claro. E à chegada tinham a recebê-los no aeroporto os responsáveis do Centro Cultural Português (CCP), da Embaixada de Portugal em Bissau; e na casa onde iriam ficar, o António tinha-lhes preparado um chá de boas vindas. E logo ali os dois últimos ficaram a saber que não iriam de imediato começar o que estava previsto, em virtude das mudanças no poder do Estado guineense. A tarefa seguinte foi, então, ver o que poderiam fazer que pudesse ser do interesse de organismos locais. O António continuaria com as duas turmas com que já trabalhava, mas agora no CCP, bem como os seminários quinzenais que vinha fazendo no mesmo CCP.

Entretanto, abriu-se a possibilidade de iniciar a turma do Ministério da Economia e Finanças, com o Jana, e surgiu uma outra do GTAPE e SIS para a Maria. Além disso, à Maria foi confiado um trabalho com crianças aos sábados de manhã e ao Jana a moderação de cinco cafés filosóficos, uma conferência em duas sessões na Universidade Amílcar Cabral (UAC) e uma oficina em cinco sessões sobre “falar em público” no CCP. E outras atividades estavam ainda em estudo.

As duas primeiras turmas do António terminaram as sessões previstas e foram entregues os respetivos certificados e ele iniciou outra turma, entretanto surgida, na UAC. A Maria iniciou a sua turma, tal como Jana a sua e este moderou ainda o seu primeiro café filosófico no CCP.

Era segunda-feira à tarde, dia 16 de março. No dia seguinte o Jana ia começar a conferência na UAC e no sábado seguinte a Maria iniciaria o trabalho com crianças. Foi então que veio a notícia, que já se previa: o CCP suspendia toda a atividade dentro e fora de portas, devido à ameaça de pandemia que se aproximava do país.

Foi colocada aos voluntários da SMV a questão: se queriam permanecer ou regressar a Portugal. Responderam que tinham vindo para trabalhar e continuavam disponíveis, mas todo o trabalho era agora impossível, pelo que ficar era apenas um problema, tanto na Guiné como para quem estava em Portugal, a SMV e as famílias. Foi então decidido o regresso. E a SMV tratou dos bilhetes. Só que, entretanto, os aeroportos de Bissau e de Lisboa foram fechados.

Então, pediram à Embaixada o seu repatriamento. E ficaram, confinados, à espera de voo. As vozes eram contraditórias: há e não há voo. Será a 24 de março à noite, informou a TAP. Mas foi adiado. Passou para as primeiras horas do dia 26. Será mesmo? Foram para o aeroporto sem bilhete e sem garantia de que teriam lugar no voo para Lisboa. Mas tiveram. Cerca das três da manhã desse dia partiram e chegaram perto das sete a Lisboa. Satisfeitos e frustrados ao mesmo tempo. E cada um seguiu para a necessária quarentena com a memória de uma missão extra-ordinária: “golpe de Estado”, golpe de vírus e até entrevista na televisão.

 

 

A palavra ao António Pereira

PORTUGUÊS EM MOVIMENTO!

 

Depois de dois meses de trabalho com três turmas institucionais e um punhado de alunos ocasionais, há dois aspetos que gostaria de destacar.

A partilha da segunda parte da missão com os meus colegas (e agora amigos) Jana e Maria. Embora muito diferentes uns dos outros, fomos iguais no esforço para que tudo corresse bem sem problemas entre nós, mesmo na parte final em que estávamos “reclusos” sob a ameaça de um golpe de estado, de um vírus e na incerteza do repatriamento. Para eles, o meu obrigado pela gentileza, simpatia e sentido de humor constantes.

Como professor, marcou-me, mais uma vez, a atitude dos alunos (os oficiais e os ocasionais) a dar corpo a uma verdadeira festa da língua portuguesa. Muita alegria nas interações nas aulas, persistência no trabalho, curiosidade e ávido desejo de aprender.

É o caso do jovem Amadu, feliz, na foto, a fazer o trabalho de casa: criar frases em português.

Fica-me um forte sentimento de realização pela utilidade do meu trabalho de professor!

 

 

A palavra à Maria Espírito Santo

Eu estava preparada com material: textos, músicas, documentos inerentes à formação dos formandos, para sessões que iria dar a funcionários dos Ministérios da Saúde e da Mulher, mas à chegada a Bissau tudo mudou…Por falta de interlocutor no novo Governo, o programa previsto foi suspenso.

Houve várias reuniões com os responsáveis do Centro Cultural Português e após muito trabalho e empenho, surgiram os resultados.

E assim surge a minha turmaformada com 21 formandos (15 do GTAPE e 6 do SIS), e no dia 12/03, início a minha formação no Centro Cultural Português.

Meu objetivo principal era conhecê-los através de uma ficha diagnóstico, onde descreveram: percurso de vida, académico, familiar, etc.

Na aula houve um feedback muito bom, uma partilha de experiências e criou-se um ambiente agradável, para que as sessões seguintes fossem orientadas para o fim que queríamos,reforço e melhoria (oral e escrita) da Língua Portuguesa.

Nas duas sessões seguintes, correram muito bem. Havia algumas dificuldades que iriam ser superadas ao longo das sessões. Mas não foi possível, devido à pandemia… ficou tudo suspenso.

No dia 17/03 as portas do CCP encerraram.

Fui até à porta da Embaixada de Portugal e todos os formandos estavam à minha espera. Não tinha palavras adequadas para lhes dizer, o quanto sentia aquela despedida inesperada. Houve um misto de emoções de ambas as partes, mas compreenderam a razão. A saúde acima de tudo….                                                                                                                                                       (17/04/2020)

 

 

 

A palavra ao José Alves Jana

Nunca tinha ido, em África, abaixo de Marrocos. Da África ocidental, só sabia de ouvir dizer (escrito ou falado), que é um modo perigoso de conhecer. Por isso, à chegada quis conhecer Bissau e depois pedia ao António para assistir a uma aula dele: o melhor é guiar-se por quem vai à frente. Quando chegou a minha vez de começar, ia seguro do que estava a fazer: melhorar as competências em Língua Portuguesa, afirmação de si e valorização da cultura local. Talvez por isso começámos bem e a formação depressa ganhou corpo a partir daquilo que os formandos sabiam e eram. Eles estavam a gostar e eu também.

O café filosófico que pude orientar no CCP correu bem, senti eu e disseram-no os outros. A “memória” foi o tema, abordado com contributos dos vários participantes. Ficou no ar a expectativa para os outros 4 que se iriam seguir.

Entretanto, fomos fazendo vários contactos locais: uma entrevista na Rádio Nacional, a visita ao Mausoléu de Amílcar Cabral e ao Museu Militar da luta pela independência, bem como à Casa dos Direitos e ao Museu Etnográfico Nacional, à Feira de Artesanato e a uma cooperativa de artesão, entre outros lugares de informação sobre a cultura local.

O passo seguinte era uma conferência em duas sessões: “De novo: O que é o homem?” A apresentação estava preparada e seria um outro desafio. Só que…

Corta! A decisão por causa da pandemia era clara: suspensão imediata de todas as atividades do CCP, dentro e fora de portas.

Restava-nos regressar, embora não soubéssemos quando. Na hora da partida, trazia no coração um povo seguramente maravilhoso, uma pobreza geral não merecida e uma enorme vontade de aprender e melhorar que por todo o lado encontrámos. E a experiência de um convívio a três que, embora mal nos conhecêssemos antes, funcionámos como se fôssemos uma equipa de longa data.