SUNHUS SUKUNDIDU
O Clube dos Poetas Vivos
Bissau
Naquela manhã de domingo (março, 2020), o encontro do professor e voluntário da SMV António Pereira com os membros de um grupo de poetas mantinha-se em agenda. Apesar da incerteza causada por um dito golpe de Estado e já sob a ameaça de uma pandemia que se aproximava. Desta vez, por isso mesmo, apenas dois apareceram, para o habitual apoio linguístico e gramatical. Katchu Pretu (Ave Preta), de 24 anos, e Bacar Banora, de 18 anos, aceitaram falar da sua paixão literária e do grupo que formaram, o Sunhus SuKundidu (Sonho Escondido em português) também reconhecido como Clube dos Poetas Vivos. Dos membros do grupo conseguimos depois apurar os seguintes: Yasmina Danif, Warendja Armando Monchacha, Yole José Albino, Aliu Fati (presudónimo Katchu Pretu), Patrik Mussa Baldé, Iracena Marques Vieira, Assana Balde, Abubacar Banora, Beazinha Nhaga. Há, por vezes, a participação de outros e há ainda pedidos de adesão ao grupo. Por agora, a palavra a quem sabe.
Foi Katchu Pretu que teve a iniciativa de criar o grupo. “Eu, desde criança, gostei de ler, e até agora gosto de ler. Então, ao longo do tempo, lendo, lendo, acabei por perceber que tenho alguma coisa também para dar. Os outros dão e eu estou a receber; eu também posso dar para a outra pessoa. Quando comecei a escrever, pensei: ‘Há pessoas que escrevem. Como é que posso conhecer essas pessoas? Tenho que criar ligação, eu e essas pessoas’. A literatura guineense está quase… quase não é literatura, porque não se ensina literatura guineense nas escolas, as pessoas não gostam de ler, não escrevem, está totalmente morta. Então, achei que conversando com algumas pessoas que escrevem e criando um clube, aprendendo com essas pessoas, pode até facilitar, ajudar a tirar a literatura guineense do espaço onde está, a evoluir. Nesse sentido, contactei colegas, um dos quais o Bacar e a Yole, criámos este clube e hoje estamos trabalhando, dando a nossa contribuição para a literatura.”
Bacar Banora confirma. “Ele veio com a ideia, falámos e [depois] apresentou para outra menina, a Yole, que é membro também. Pensámos mais na perspetiva de alavancar a nossa cultura, a cultura guineense. Sabemos que a literatura, aqui na Guiné-Bissau, é muito desprezada, não representa uma coisa importante para a sociedade guineense. Depois, pegámos o grupo para fazer frente contra essa maldade contra a literatura. Procurámos uma casa para representar a nossa cultura através da arte.”
Percebe-se que no projeto se entrelaça poesia e trabalho social, militância poética e cidadania. Podemos dizer que o próprio grupo é um poema.
Bacar Banora não hesita nas palavras: “Este grupo, para mim, é um sonho, como diz o nome [do grupo], é uma banda, um clube, é o meu escritório, o meu local de trabalho, é muita coisa. No fundo, é para sonhar a poesia, criar para ter o livro. Representa quase um sonho realizado, uma coisa já feita.”
E Katchu Pretu diz o que representa para ele o grupo que propôs e que hoje ajuda a animar. “Para mim, representa a união, a comunhão, a irmandade, porque o que aqui acontece não acontece em nenhum [outro] sítio: como nós partilhamos os trabalhos e as ideias, é simplesmente irmandade.“
Percebe-se que para estes jovens a poesia não é mero adorno ou atividade de tempos livres. É alguma coisa que nasce de bem mais fundo.
Bacar Banora “A poesia é muito importante para mim. Eu não levava a questão da poesia muito a sério, a questão de escrever. Eu vim gostando só dentro do grupo, quando criámos o Sunhus Sukundidu. Depois, representa uma coisa especial, nobre, que quero levar p’ra frente.”
Katchu Pretu “Para mim, a poesia é tudo, é uma forma de me poder expressar, mais livre. Porque, ao estar com a pessoa conversando podemos até discutir, ao ponto até de brigar; mas com a poesia consigo passar a mensagem e chamar a atenção das pessoas para uma certa forma de mudança das mentalidades. Para mim, o poema, ou a poesia, é vida.”
É muito equilibrado o número de homens e mulheres, o que não é comum na Guiné-Bissau. Isso leva-nos a perguntar como é visto o grupo do exterior, porque há nele ousadia ou mesmo provocação.
Katchu Pretu “Criámos uma forma de chamar a atenção da sociedade guineense, porque o nosso objetivo é trazer de volta os valores perdidos, valores da sociedade guineense. Então, criámos aquele espaço Sunhus Sukundidu onde organizamos eventos. Falamos de poesia, da cultura, quer dizer, a nossa forma de viver, onde apresentamos poesias. Quase convidamos todos os que fazem arte, entre os quais músicos, que trazem músicas novas, para divulgar. Mas aceitamos aquela música que vai poder ensinar à sociedade uma coisa boa, ou uma coisa nova. Então, para nós, a sociedade guineense está recebendo o que nós fazemos, porque participam. Nos eventos conseguimos até quarenta ou cinquenta participantes.”
Bacar Banora “Além disso, Sunhus Sukundidu representa um espaço onde as pessoas conseguem libertar o que há dentro delas. O nome diz tudo: Sunhus Sucundidu. Em português significa Sonho Escondido. Há muitas pessoas que têm uma habilidade escondida dentro. Por exemplo, ler, escrever, pintar, uma arte escondida, mas têm receio de apresentar isso. E o Sunhus Sukundidu, aquele espaço que promovemos, permite às pessoas apresentarem isso, terem a ousadia de falar à frente das pessoas. E isso é importante, as pessoas estão recebendo de uma maneira boa a nossa iniciativa e também o apoio que estamos dando às pessoas para conseguirem apresentar, conseguirem libertar aquele sonho que têm por dentro, que têm receio de apresentar, de promover, de mostrar às pessoas que têm uma habilidade que pode mudar muita coisa. Por exemplo, no dia 8 de março [Dia da Mulher], convidámos uma mulher eletricista, que é uma espontânea na nossa sociedade que é muito machista, muito preconceituosa nestes aspetos. Trouxemos a Lisdália para falar da sua vida, o que ela atravessou para conseguir o que ela é hoje. Isto é uma coisa nova, só o Sunhus Sukundidu consegue fazer isto.”
Não têm um espaço físico seu onde possam realizar as suas atividades. A sua reunião aos domingos de manhã com o professor António Pereira acontece à sombra do monumento aos Heróis Nacionais, um velho símbolo colonial rebatizado depois da independência. As iniciativas de intervenção literária e social são feitas no espaço urbano chamado Mártires de Pindjiguiti*, que é público, junto ao porto de Bissau. Vontade, muita; recursos, poucos, portanto.
* Referência a 50 mortes e cerca de uma centena de feridos resultantes da repressão violenta, pela polícia e por militares, a 3 de Agosto de 1959, no porto de Pindjiguiti, em Bissau, na sequência de uma greve reivindicando aumentos salariais.
Como se vêem daqui a cinco anos?
Katchu Pretu “No plano que traçámos, temos uma coletânea para publicar, uma obra poética. Estamos trabalhando nisso: cada poeta vai entrar com cinco poemas. Vão ser poemas de resgate de valores, de motivação à leitura. Até 2022, esperamos conseguir pelo menos duas obras para contribuir para a mudança de mentalidades.”
Bacar Banora “Falando da meta para 2022, pensamos fazer uma coletânea de poesias e contos, se conseguirmos ter fundos suficientes para isso, de modo a contribuir para a nossa literatura. A literatura guineense está quase morta e, com aquela obra, esperamos fazer uma mudança na sociedade guineense. Queremos ter uma sociedade que gosta de ler, que gosta de consultar bibliotecas, que presta alguma atenção à literatura, não só guineense mas também estrangeira. Ler é uma maneira de aprender outras coisas, é uma maneira de libertar o que há dentro de nós. É muito importante continuarmos a dar a nossa contribuição para o nosso país e também para o mundo.”
Katchu Pretu “Além disso, gostaríamos de publicar mais obras, cada um poder publicar a sua própria obra, além da coletânea. Quando cada um publica, estamos contribuindo para a Guiné-Bissau ter mais escritores. E quando temos mais escritores, o guineense vai passar a consumir mais obras literárias guineenses em vez de estrangeiras. Embora [estas] sejam muito importantes, a literatura guineense fala mais da realidade guineense. O mais importante é fazer evoluir a realidade guineense ou a literatura na base da realidade guineense.”
Visto o “sonho”, importa saber um pouco mais dos jovens que o vivem
Katchu Pretu – “Estou fazendo um curso técnico, panificação, escrevo e sou ativista.”
Bacar Banora – “Também sou ativista social e estou a estudar no liceu.”
Numa sociedade pouco escolarizada, em que o potencial de compradores de livros publicados andará pela centena de pessoas, onde as necessidades primárias ainda não estão garantidas… como é que as famílias veem a sua militância literária?
Bacar Banora “Por exemplo, eu sou ativista social. Eu vou à marcha… [a uma manifestação] Nestes últimos três anos, ainda não há uma educação estável, as escolas não estão a funcionar, eu vou à marcha para protestar contra isso. Quando volto a casa, a minha mãe diz-me ‘Vais morrer um dia…’, quer dizer que eu vou morrer na marcha, vou ser baleado… A nossa sociedade tem de enfrentar coisas que não são boas. Por exemplo, eu não vou à escola há três meses e sinto-me bem com isso, quando na verdade não devia. É muito complicado as pessoas compreenderem que não devemos dar-nos ao luxo de viver nesta maldade. Temos que lutar para o nosso país, temos que lutar para o mundo. Ficando parado, não anda. Sobre a literatura, a maioria da minha família não sabe se eu escrevo, porque escondo muitas das minhas obras literárias, publico nas redes sociais metade do que eu escrevo, mas não sabem que levo muito a sério a literatura, a poesia. E quero continuar a dar a minha contribuição de uma outra maneira, para além de marchar, de estar à frente, da luta, também através da literatura consciencializar o nosso povo para que possam ter uma consciência mais ampla, mais inconformada com a maldade em que vivemos.”
Eles não sabem porque não vale a pena dizer-lhes ou porque teriam eles uma reação negativa?
Bacar Banora “Não é porque teriam uma reação negativa, mas porque a nossa sociedade não dá valor à literatura. Se eu [lhes] apresentar um texto à frente, eles não vão entender o que eu escrevo. A sociedade guineense não lê, de modo que não compreende o que um poeta escreve, o que um poeta quer com a sua poesia ou com a sua obra de arte, qual é a mensagem que ele quer deixar. Sei que se eles compreenderem, vão gostar, porque na minha família gostam das pessoas que lutam, que valorizam a educação, que valorizam a escola. Mas não vão compreender, não vão dar valor à minha obra, aos meus escritos.”
A situação de Katchu Pretu é um pouco diferente. “Na literatura, o meu tio sempre me apoiou e está me apoiando. Não de uma forma financeira, mas conversando comigo, dizendo que eu posso alcançar o que eu quiser, é só questão de me esforçar. E dos amigos também recebi esse carinho, a força e essa coragem. Na literatura acho que não tenho problema nenhum para exercer o ativismo. Mas na defesa dos Direitos Humanos tem sido muito difícil nos últimos anos. Eu e o Baca pertencemos a um movimento que é político revolucionário. Nós reivindicamos, levantamos a voz quando o sistema está mal e sempre somos vistos de “bocas de aluguer”, de perturbantes. “Bocas de aluguer” significa que somos pagos para falar ou reivindicar. Estes partidos políticos, ou ditos políticos, que temos aqui, quando uma ideia vai contra o que eles fazem, dizem logo que o adversário ou opositor é que lhe deu dinheiro para poder falar. Tem sido difícil reivindicar para ter escola. Fomos presos, fomos espancados, fomos intimidados, perseguidos. E na base disto o meu tio sempre quis que eu deixasse a luta, mas quando eu percebi que sou um guineense, e tenho muito para dar, tenho muito a falar quando o sistema não está bom. A sociedade guineense precisa mais de viver em comunhão, que separados, uma pequena elite a viver bem e a maioria a viver mal. Eu acho injusto, por isso me inseri nesses movimentos de revolução e agora estou exercendo o ativismo de uma forma livre, embora com a perseguição de que falei. Mas a luta continua, estou lutando.”
Trata-se, portanto, de poesia política, comprometida, ou é outra coisa?
Katchu Pretu “Tudo o que escrevemos está voltado com revolucionar. Revolução! Falamos da política quase o que vivemos. É o que mais vivemos: reivindicar. Então, os nosso trabalhos falam mais daquilo e um pouco, como sabem sobre a juventude, de amor e assim.”
E os outros elementos do grupo também têm essa dimensão política nos seus textos?
Bacar Banora “Não, somos dois, no grupo os que escrevemos mais sobre a área política. Eu escrevo sobre política, mas também sobre amor, paixão e essas coisas. Somos equilibrados como grupo: nós os dois escrevemos mais sobre política, há outros dois que escrevem mais sobre amor, há outros que escrevem mais sobre desabafos e coisas assim. Somos muito equilibrados no grupo. Falando da perspetiva política, eu escrevo mais em crioulo e escrevo alguns textos em português para desabafar. Quando vemos uma coisa na sociedade que não está bem, transformamos isso em poesia. Não importa se é política, se é amor, se é o comportamento das pessoas que está mal, transformamos isso em poesia. É isso que representa o Sunhus Sukundidu.”
Há outros grupos com militância literária, em Bissau. Estes jovens falam no AEGUI, a Associação de Escritores Guineenses, o PLUMB, uma associação de escritores da nova geração que “ainda não produziram”, o Seiva da Nova Esperança… Não foi possível confirmar os nomes, muito menos chegar à fala com eles. Haverá canais de comunicação entre eles?
Bacar Banora “Sim, existem outros grupos com o mesmo trabalho, só que estão lá e nós estamos cá, trabalhando cada um da sua forma. O objetivo é único, só os caminhos é que são diferentes.”
E essa diferença merece uma última palavra.
Katchu Pretu “Sobre a liderança dentro do Sunhus Sukundidu: é horizontal, não tem presidente, não tem secretário-geral, todo o mundo trabalha quando há alguma coisa para trabalhar, todo o mundo é líder quando há alguma coisa para liderar, todo o mundo é responsável quando há alguma coisa para organizar… Isso me deixa muito emocionado com o nosso grupo, porque não é verificável nos outros grupos. Todos os grupos, da poesia e não só, têm um presidente, têm um responsável máximo. O nosso não tem. Todos somos responsáveis máximos dos nossos sonhos, dos nossos objetivos, dos nossos projetos. Isso é bom.”
Bacar Banora “Nem só por poemas passamos a mensagem. Também por fotografias tentamos fazer chegar a mensagem. Porque existem outros que não conseguem ou não sabem ler. Por isso, no dia 22 de março vamos ter uma sessão de fotografia onde vamos fazer fotos de acordo com as mensagens que queremos passar para a sociedade. Serão publicadas nas redes sociais e vamos tentar fazer uma exposição também.”
Não chegámos a saber se a “sessão de fotografia” chegou a ser concretizada, dada a ameaça crescente da covid-19 e as medidas a que esta obrigou. De qualquer modo, parece inevitável que esta força poética e social vai encontrar formas de continuar um trabalho que há de dar os seus frutos. E quem quiser acompanhá-los… Estão andam também pelo Facebook.
por José Alves Jana,
voluntário da SMV